Alvorada, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi, é um mergulho íntimo nos últimos dias de Dilma Rousseff no Palácio do Alvorada durante o processo de impeachment. Longe da retórica de um documentário jornalístico tradicional, a obra opta pelo Cinema Verdade, aproximando-se do cotidiano para revelar um retrato menos protocolar da única mulher a ocupar a presidência do Brasil. Em vez de entrevistas formais ou narrativas explicativas, acompanhamos Dilma entre reuniões tensas, ligações intermináveis e momentos de pausa que, paradoxalmente, dizem tanto quanto os discursos políticos.
A força do filme está justamente nessa abordagem que mistura invasão e familiaridade. A câmera percorre corredores, registra detalhes banais – como a escolha do cardápio ou a preocupação com um filtro de água –, e cria, assim, uma narrativa que humaniza a presidente sem ignorar a gravidade do contexto político. Essa alternância entre o íntimo e o histórico, entre o café da manhã e os pareceres jurídicos, revela o contraste entre a monumentalidade do Palácio e a fragilidade humana de quem está prestes a ser destituída do poder.

O filme se sustenta em uma tensão constante: a tentativa de desmistificar Dilma sem perder de vista que ela é, inevitavelmente, uma figura pública e histórica. Há momentos em que a presidente pede para desligar a câmera, há instantes de silêncio incômodo, e há também explosões de lucidez e firmeza quando fala de política e do Brasil. A direção, consciente dessa ambiguidade, constrói planos que acentuam esse paradoxo – como os enquadramentos em contra-plongée, que ora a tornam imponente, ora evidenciam vulnerabilidade.
Tecnicamente, Alvorada aposta em uma estética que reforça sua proposta: câmera na mão, iluminação natural, som ambiente que deixa escapar passos, portas, vozes ao fundo. Tudo isso contribui para a sensação de que estamos diante de um registro cru, ainda que a montagem revele um olhar preciso sobre a narrativa. A presença constante do espaço – corredores, jardins, salas de reunião – confere ao Palácio um papel quase simbólico: não apenas cenário, mas personagem que testemunha a ascensão e a queda, a permanência e a transitoriedade.
A dimensão histórica não é ignorada. As imagens da votação no Senado, transmitidas em televisores enquanto Dilma arruma livros ou conversa com assessores, funcionam como lembrete incômodo do que está em jogo. Ao mesmo tempo, o documentário evita transformar-se em panfleto; ainda que seja difícil não perceber a perspectiva das diretoras, o foco permanece no humano, no íntimo, no impacto subjetivo de um evento político de proporções gigantescas.

Há, porém, algo de profundamente poético no modo como Alvorada captura pequenas cenas: Dilma pedalando em uma bicicleta, funcionárias sentando na cadeira presidencial, o voo de um pássaro que parece tentar escapar do reflexo no vidro. São momentos que sintetizam a ideia de um poder que, por mais sólido que pareça, é transitório. E é nessa intersecção entre melancolia e dignidade que o filme encontra sua força, evitando o sensacionalismo para abraçar a contemplação.
No fim, o documentário não apenas mostra a saída de uma presidente, mas questiona a própria natureza do poder, da história e da memória. Alvorada é um filme sobre despedidas, mas também sobre permanência – não nos cargos, mas naquilo que fica inscrito na história e no imaginário coletivo. Um registro necessário, construído com delicadeza e densidade, que transforma um espaço monumental em cenário de vulnerabilidades humanas.




