Capitu e o Capítulo

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"Capitu e o Capítulo" é uma proposta para olharmos para outros cantos da sala onde a história de Machado de Assis está sendo contada.

Capitu, personagem do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, é uma das figuras mais emblemáticas da literatura brasileira. Teria, essa mulher – com os seus famosos olhos de ressaca – traído ou não o protagonista Bentinho? No livro, só temos a visão desse homem, já mais velho e que se auto-intitula de casmurro, rabugento, sobre a história de amor que atravessa a vida dos dois. Como confiar no orgulho ferido de quem alimentou essa história por anos? Como olhamos para Capitu se ela é narrada apenas por uma única pessoa que acredita ter sido traída por ela? A resposta está na construção da ficção e na forma pensada para sustentar esse projeto de escrita. O romance é composto de capítulos curtos (são mais de 140 capítulos em 180 páginas), o autor também está sempre presente no texto, mostrando como a escrita acontece e chamando quem lê para olhar e/ou estar junto na narrativa. É um livro sobre fofoca, ciúme, mas também sobre mecanismos para se contar uma boa história e reflexões sobre o ofício.

É justamente nessas características do romance machadiano que o cineasta veterano Júlio Bressane aposta no filme Capitu e o Capítulo, escrito em parceria com Rosa Dias. Trata-se de mais um estudo de caso do diretor sobre a obra do “bruxo do cosme velho”, um dos apelidos do escritor carioca. Aqui, Bressane trabalha menos com a ideia corriqueira de adaptação e mais na prática do ensaio cinematográfico em diálogo com a literatura, algo que já vem fazendo há décadas, inclusive com a obra de Machado de Assis. O diretor aproveita, por exemplo, a fragmentação da obra para colocar em cena camadas de construção da ficção no cinema: ciúme e paranoia em cenas de ambientes fechados; construção de personagens apostando em cenas que dialogam com o detalhe da interpretação de teatro, com destaque para Capitu (Mariana Ximenes), Bentinho (Vladimir Brichta), Enrique Diaz (Casmurro, Machado), Sancha (Djin Sganzerla)  e Escobar (Saulo Rodrigues); a reflexão do próprio diretor e sua obra com cenas de seus filmes; a presença das artes plásticas em elementos de cena como pinturas famosas nas paredes, em escalas maiores do que em quadros, assim como elementos de natureza morta – vasos e flores –, mas também figurinos destacados que trazem vislumbres do século XIX, por exemplo. Tudo isso funciona por conta de um projeto de montagem cuidadoso, como acontecia na obra de Machado, além de fotografia e direção de arte que fazem o mecanismo do ensaio cinematográfico rodar.

Como comentado, Júlio Bressane explora a obra machadiana desde seus primeiros filmes, ainda na década de 1960, e seguiu trazendo sua leitura e tradução em filmes como Brás Cubas (1985) e A Erva do Rato (2009), para citar apenas dois diretamente conectados com a literatura. Mas, também, filmes como Cuidado, Madame (1970), por exemplo, trazem a ironia, o deboche e a dúvida de quem assiste em relação ao projeto “de escrita” do filme. Duas empregadas domésticas que saem matando as madames/patroas que ultrapassam os limites da relação de trabalho, isso sem parecer um filme de gênero: é a ficção em seu pleno funcionamento. Em entrevistas sobre Capitu e o Capítulo, o diretor reforça sempre que a ideia para esse filme surge ainda na década de 1980, em uma conversa com o tradutor e poeta paulista Haroldo de Campos, que teria dito que importava menos a Capitu no romance e mais o capítulo (curtos e fragmentados). Depois de décadas pensando (e realizando) sobre isso, Bressane enquanto artista parece estar ainda mais atento sobre a questão de que importa mais o fazer do cinema (o como) do que a narrativa em si.

Justamente, Capitu e o Capítulo traz várias camadas de linhas narrativas (quase nunca lineares, apesar de dialógicas) costuradas com as próprias obsessões do diretor, o que se torna um desafio bastante interessante para quem assiste. O livro de Machado de Assis já existe, mas o que a pessoa que lê faz com a história e a partir dela? O filme de Bressane é uma proposta para olharmos para outros cantos da sala onde essa história está sendo contada.

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