Filme assistido durante a 13ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
A diretora e jornalista libanesa Jocelyne Saab é – segue sendo, mesmo depois da sua morte, em 2019 – uma figura importante para pensarmos a resistência palestina hoje. Não apenas porque filmou as mulheres daquele país, na década de 1970, mas também por ter fabulado imagens sobre as ruínas de seu próprio, mostrando como a guerra adentra as ranhuras das fronteiras dos seus territórios. Por esses motivos, assistir o combo de Era uma vez Beirute, de 1994, com o curta As Mulheres Palestinas, de 1974, foi uma experiência importante e potente durante a 13ª edição do festival Olhar de Cinema.
Uma mulher que segura uma câmera, antes foi uma espectadora. Colada à exibição do curta, Era uma vez Beirute surge como uma fabulação em cima das ruínas deixadas pelo passado. Nessa hábil ficção de Saab, duas jovens Yasmine (Michèle Tyan) e Leila (Myrna Maakaron) atravessam uma Beirute destruída para levar dois rolos de filme até a cinemateca da cidade. As primeiras cenas do filme já dão o tom, com as duas – que nasceram durante a guerra civil libanesa, que durou de 1975 até 1990 – em um táxi. Temos uma visão privilegiada de dentro e fora do carro: a câmera que acompanha de frente mostra a amplitude das ruínas; a de dentro acompanha uma conversa divertida, porém crítica e assertiva, em contraponto da brutalidade do espaço externo. Uma das meninas está vendada, como se se negasse a ver os escombros que nascerem com ela, ou antes dela. A venda é retirada, elas estão prontas para ouvir, ver e viver a Beirute guardada nos rolos de filmes e contada pelo Sr. Farouk (Emile Accar), uma espécie de guardião das imagens que mantém a cidade e o Líbano vivos apesar das tentativas de apagamentos pelos homens da guerra.
A partir daí, como acontece em filmes clássicos como Sherlock Jr, de Buster Keaton, e A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, para citar apenas dois dirigidos por homens, as protagonistas literalmente entram dentro da tela, ou melhor, dos rolos de filmes para fabularem um país em vias de se reerguer. Farouk narra dezenas de histórias cinematográficas feitas a partir do Líbano, incluindo as estadunidenses que sempre exotizaram a região, e Leila e Yasmine julgam, riem e repensam esse lugar que elas ainda não conhecem.
Era uma vez Beirute poderia ser assistido sob a perspectiva de qualquer olhar cinéfilo se a diretora não fosse “herdeira” de nada, já que a cinefilia exige uma afiliação. Como uma figura importante na recuperação de imagens do cinema libanês – assim como pioneira em filmar e documentar pessoas negligenciadas pela mídia e o cinema hegemônico, como no caso de Mulheres Palestinas, por exemplo –, Jocelyne Saab decide fabular em cima de arquivos, em nome da manutenção da filmografia daquela cidade antes da guerra. Apesar do guardião dessas imagens ser um homem, é ela a nossa Sherazade que articula essas personagens, jovens mulheres, dentro do filme. A espectadora dos filmes antes da guerra, responsável por fazer a manutenção dessa história cinematográfica, repassa o bastão para outra geração de mulheres. Imediatamente lembrei de Nadine Labaki, outra diretora libanesa, nascida um ano antes da guerra começar, que segue fabulando o Líbano e a capital Beirute. A partir daí sim, talvez, possamos pensar uma afiliação de diretoras que fabulam sobre as ruínas – importante citar também a iraniana Samira Makhmalbaf –, e não sob a guerra.
Um agradecimento especial à Carol Almeida, uma das curadoras do Olhar de Cinema e da Mostra de Cinema Árabe Feminino, por ter batalhado para esses filmes estarem presentes na exibição especial. Na abertura da sessão, Carol comentou sobre a importância de Jocelyne Saab fazer do cinema uma forma de construir existência. Que a gente, enquanto espectadoras, siga repassando a experiência dessa existência.