Em 1940, apenas dois por cento das mulheres negras tinham diploma universitário. Esse é apenas um dos dados que a escritora Margot Lee Shetterley cita no livro Estrelas Além do Tempo, que também inspirou o filme homônimo dirigido por Theodore Melfi e concorre em três categorias no Oscar de 2017, onde viabiliza uma longa trajetória em colocar mulheres negras e matemáticas em seu lugar na História. O que Margot – e o filme em suas devidas proporções – propõe é o reconhecimento de centenas de mulheres que trabalharam na Nasa, desde a década de 1930, em funções que caberiam à designação de habilidosas engenheiras e cientistas, porém passaram despercebidas por serem mulheres e negras.
Entre 1875 e 1964, vigorou no sul dos Estados Unidos as chamadas leis de Jim Crow que legalizaram – em uma região conhecida pela escravidão e resistência ao abolicionismo – a segregação racial. Essas leis discriminavam negros e outros grupos étnicos que não correspondessem à uma lógica branca. Os abusos se disfarçavam atrás de um discurso mentiroso que pregava a não fricção entre raças, colocando a comunidade negra em guetos e em situações corriqueiramente constrangedoras como banheiros e bebedouros separados, além de entrada e assentos específicos em ônibus. É em meio a esse contexto, no começo dos anos de 1960, que o filme Estrelas Além do Tempo nos presenteia com as personagens Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), Mary Jackson (Janelle Monáe) e Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson) como três mulheres, amigas e matemáticas que fizeram história – na vida real, pois é uma história verdadeira – na NASA, em momentos cruciais do avanço espacial americano, dando visibilidade à centenas de mulheres que trabalharam em importantes projetos americanos.
O roteiro de Melfi e Allison Schroeder é construído sobre os fatos relatados por Margot, colocando as personagens entre seus dramas pessoais e seus papéis naquela sociedade, não apenas como mulheres negras mas também como mães e filhas, usando a minúcia da descrição da autora como elementos para enriquecer o contexto. É fato que o longa é bem mais leve que o livro, que tem uma intenção séria de dar visibilidade não apenas às mulheres – negras e brancas – que trabalharam no centro de pesquisas da NASA, em Langley (estado de Virginia), mas à toda a comunidade negra que, em meio à segregação racial, fazia sua resistência dando fomento e oportunidade de estudos aos jovens e interessados.
O momento e as situações em que essas mulheres são incorporadas ao sistema espacial e de guerra deve ser questionado, apesar de esse não ser o foco de Estrelas Além do Tempo. Para além do espectador ter a noção de que a corrida armamentista e espacial era alimentada por sentimentos de nacionalismo e supremacia americana, o que vem à baila aqui são as forças de resistência de personagens históricas, negligenciadas pela banalidade do cotidiano. Como seria hoje, uma mulher que enfrenta um juiz, pedindo que ele faça história colocando-a em um curso de engenharia em uma universidade branca e masculina? Outra, que executa o cálculo exato para que o primeiro americano saia e volte ao planeta, são e salvo em uma cápsula?
Estrelas Além do Tempo é sobre mulheres durante os períodos de Guerra, dominando papéis que antes eram considerados masculinos. Principalmente, sobre mulheres negras em um duplo esforço de resistência de classe e gênero. Quem, que viveu em liberdade, teria ânimo e vontade de retornar ao lar e apenas viver a sua vida depois que a guerra e as conquistas masculinas tivessem terminado? Um dos pontos mais interessantes é perceber que boa parte dessas mulheres, que trabalhavam tanto na NASA quanto em outras atividades, tinham seus filhos e sua família e isso não as impedia de sonharem com suas carreiras e estudos. A história de Mary, Dorothy e Katherine é a história de muitas outras que ainda permanecem no anonimato, nos corredores escuros da história construída longe da égide do heroísmo dos homens.
Estrelas Além do Tempo é o segundo trabalho de Theodore Melfi – que estreou com Um Santo Vizinho – e aqui propõe um ritmo próximo de sua estreia, colocando o drama e o riso próximo, dando um ar leve sem deixar que as críticas permaneçam em várias camadas. A direção de arte de Jeremy Woolsey é um ponto alto do filme, conferindo beleza e estilo nas cenas, ambientando todos os cenários – junto com a fotografia – também com a força da estética.
O ápice do longa são as atuações de Octavia Spencer, Janelle Monáe e Taraji P. Henson, que dão a força necessária das protagonistas, diferentes entre si mas conectadas por uma força inexplicável, calcada pela sororidade entre elas. As três atrizes conferem particularidade às suas personagens e causam empatia imediata ao espectador, que é seguido pelos bons sentimentos que o filme traz, sem deixar de pensar quantas personagens incríveis ainda se encontram correndo por alas de centros de pesquisa, em busca de seus desejos e sonhos.
Há uma cena triunfal do grupo de mulheres da chamada Computação Oeste (uma sala em Langley, onde ficavam as matemáticas negras) vindo por um corredor, encabeçadas por Dorothy, em direção a um novo lugar onde negras e brancas trabalharão juntas. É um tipo de cena técnica recorrente no cinema, sempre mostrando homens decididos, e aqui tem uma força que caracteriza a importância de um longa como Estrelas Além do Tempo. O cinema não apenas como uma manifestação meramente estética de imagens, mas como força de recriação de histórias esquecidas, que se eternizam em uma película e podem ser conhecidas para além das fronteiras, dando protagonismo aos considerados figurantes da História.