Inch’Allah

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“Inch’Allah” consegue acima de tudo discutir a alteridade de ser humano

A visão – e intervenção – do Ocidente sobre a cultura do Oriente Médio não é um assunto novo e já foi retratado de várias formas no cinema, na literatura e inclusive nos quadrinhos. O estranhamento somado ao choque de valores culturais é uma premissa básica quando se trata do assunto, e o longa “Inch’Allah” (2012), da canadense Anaïs Barbeau-Lavalette, mantém essa temática e consegue ir muito além de ideais políticos e religiosos, trazendo também conflitos humanos.

A jovem médica canadense Chloé é voluntária da Cruz Vermelha na região de fronteira de Ramallah, capital palestina, mas mora em Jerusalém, do outro lado do muro que separa as duas cidades. Distante de casa, a médica acaba criando laços com Ava, uma policial israelita que mora no andar debaixo do apartamento de Chloé, e a família de sua paciente palestina Rand, grávida e com o marido a ser julgado em Israel.

A protagonista, vagando pelos dois mundos distintos da Palestina e Israel, se vê rodeada por dois lados extremos de ser apenas uma médica – nada imune – da Cruz Vermelha . “Estar de ambos os lados é estar de lado algum”, ela escuta da voz amarga de Rand e “Esta não é a sua guerra”, diz Ava, ambas as frases marcam os incontáveis momentos do paradoxo ocidente-oriente que permeiam todo o roteiro de “Inch’Allah”.

A expressão “Insha’Allah”, de origem islâmica, se refere aos desejos de Allah (Deus no Islã) sobre o futuro da humanidade e do planeta em si. O longa de Anaïs Barbeau-Lavalette trata, em muitos momentos de forma explícita, com ironia sobre esse desejo de Deus somado ao livre-arbítrio dos homens que usam a religião para justificar suas ações. Os antagonismos do roteiro de “Inch’Allah” são a força motriz para que o longa não seja apenas um relato sobre uma médica voluntária em um território de conflito. A Palestina e Israel de Anaïs formam um campo aberto em constante tensão, os papeis de opressores e oprimidos se misturam e alternam entre si, e é quase impossível, como espectador, se manter firme numa única posição.

As mulheres são destaque em “Inch’Allah”, não somente por ser um longa escrito e dirigido por uma mulher, mas também pelo paradoxo de serem protagonistas e coadjuvantes de uma cultura enraizada no homem e na representação diante de seu Deus. Uma médica, uma palestina e uma israelita, com personalidades bem definidas, passeiam por um cenário desolado e tenso, com os papéis masculinos de pouca relevância e, quando presentes, estão personificados na figura de crianças que já não diferenciam a crueldade e o cotidiano.

Aliás, as crianças são os personagens mais cruéis de “Inch’Allah”, andando livres pelo território alerta do muro que separa Israel e Palestina, eles ora aparecem como grandes corajosos, enfrentando as forças de resistência, ora como um inocente menino vestido de super-herói. Safi, o filho mais velho da personagem Rand é um pequeno garoto, calado que veste uma ironica fantasia de superman, circulando pelos territórios saindo um tanto da realidade cruel do longa.

A montagem e direção do longa facilitam muito para que o espectador vá colhendo cada pequeno detalhe dos planos. O roteiro de Anaïs é bem construído, nada sobra nos planos pois o tema é tenso e o filme aposta nos sentidos das imagens, dos rostos e mesmo do corpo dos personagens. Destaque para o entrosamento entre Evelyne Brochu (Chloé) e Sabrina Quazani (Rand) que criam uma relação de alteridade bastante interessante.

“Inch’Allah” é de 2012 e passou por muitos festivais antes de sair no circuito alternativo brasileiro. É um filme que mesmo trazendo um tema bastante saturado no cinema nas últimas duas décadas, consegue acima de tudo discutir a alteridade de ser humano. Independente de posições políticas e/ou religiosas, a pergunta que paira durante todo o longa é “Até quando os oprimidos acabarão se tornando opressores?”

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