A diretora francesa Agnès Varda morreu em 2019 e a atriz inglesa – mais conhecida pelos seus papéis franceses entre os anos 60 ou 70, ou de “ninfeta” em Blow up, de Antonioni –, Jane Birkin morreu em 2023. Mesmo com vinte anos de diferença de idade, ambas trabalharam juntas e criaram filhos por perto, construindo e pensando o cinema e a relação da arte com as mulheres. Em 1986, Jane B. estava prestes a completar 40 anos e Varda a filmava a fim de realizar um dos seus retratos cinematográficos, algo que já vinha investigando desde a década de 1960. Jane B. por Agnès V., lançado em 1988, coloca as duas para conversar sobre como uma artista filma a outra sem hierarquias no olhar.
A cena que abre – e fecha – o longa é representativa, Jane B. está com um vestido de época e compõe um quadro. Ela é uma espécie de musa, que costumeiramente é silenciosa na pintura, mas aqui fala sobre si. Musa ou criadora, Jane B. por Agnès V. não deixa de ser uma revisão da carreira da atriz/cantora/modelo, mas também é uma discussão sobre autonomia e política de atrizes que o cinema atravessou no século XX. Uma cena emblemática é Jane B. vestida da homônima companheira de Tarzan, dizendo – com a sombra da diretora projetada no canto – que não gostaria de fazer esse tipo de papel. O quanto um deboche ensaístico desse pode dizer sobre a escopofilia referente a uma atriz marcada pelos sussurros de “je t’aime, je t’aime” nas músicas de seu ex-marido, Serge Gainsbourg?
Jane Birkin fala bastante para e com a câmera, algo diferente de uma entrevista que já chega com perguntas intencionais. Aqui percebemos como a atriz é despojada com suas camisetas muito largas, calça jeans e tênis all star, longínqua da figura de sex symbol. Passeamos com ela pela casa da infância, na Inglaterra, e também na casa parisiense onde cria seus filhos. Somos afetadas pelo olhar afetivo de Varda, que nos devolve um filme cheio de voltas e traquinagens. Não espere um perfil comum em Jane B. por Agnès V., mas sim uma peça que compõe outras junto com seus curtas como Resposta das Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo (1975) e longas como Kung-Fu Master (1988), esse último funcionando como uma criação do universo Birkiniano: a personagem emulada pela câmera de Varda.
Duas das características fundamentais do cinema de Agnès Varda estão presentes em Jane B. por Agnès V.: a empatia radical do olhar, fazendo a “protagonista” falar e imaginar como gostaria de ser retratada e trazendo a sua própria visão sobre maternidade, arte e relacionamentos. A outra, é como Varda faz as coisas funcionarem sem maiores subterfúgios. Ao longo do filme questiona que tipo de produções Jane B. gostaria de ter feito e, com as respostas, traz alguns esquetes em que a atriz atua livremente. Já percebemos a forte veia ensaística, que dominaria o cinema da francesa no começo do século XXI, mostrando que pessoas documentadas são personagens: performances de si mesmas.
Mais tarde, a filha de Jane, a também atriz e cantora Charlotte Gainsbourg, filmaria a mãe com 74 anos em Jane por Charlotte (2021). Talvez aí resida o que Varda fez de melhor: propor o diálogo e assim possibilitar que mecanismos do seu cinema continuem existindo. Na prática, Jane Birkin existe mais completa em Jane B. por Agnès V. do que em biografias e textos sobre sua vida que tentam dar conta de quem ela foi. Varda deixa, finalmente, a atriz olhar a si mesma (observe a cena do espelho) e assim não estamos apenas observando, mas descobrindo juntos, como um bom documentário (seja lá o que isso for) deve ser.