A produção parcamente traduzida no Brasil de Lou Andreas-Salomé faz com que Lou, longa realizado pela alemã Cordula Kablitz-Post, seja um filme obrigatório para qualquer pessoa que se interesse pelas raízes da psicanálise, filosofia e mesmo sobre a obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Salomé conviveu intimamente com o famigerado filósofo e, inclusive, foi acusada de tê-lo tornado um homem amargo nos últimos anos de sua vida. No filme alemão é possível ter um panorama básico da vida da filósofa e de suas posições sobre assuntos que vão desde a condição da mulher até os momentos em que o nazismo dava passos enrijecidos no final da década de 1930.
Quando Lou Andreas-Salomé (Nicole Heesters), aos 72 anos, conhece o germanista Ernst Pfeiffer, vê uma grande oportunidade de relembrar a sua vida para que ele escreva uma biografia. Nesse movimento de reconstruir as suas memórias – através de uma caixa cheia de cartas, postais e fotos – ela vai dando forma não apenas à sua história mas, também, à própria noção que temos dos grandes intelectuais europeus daquele momento. Lou, desde muito jovem, se viu confrontada pelo conhecimento. Era profundamente questionadora e foi se tornando sedenta por uma vida libertária para que um pensamento próprio pudesse ser construído. A única barreira que tinha era ser mulher e isso acabou definindo toda a sua vida.
Todos os homens com quem Lou Andreas-Salomé se relacionou desejavam tê-la como propriedade. Desde intelectuais como Paul Rée e Nietzsche – frequentemente colocados como amantes dela – até Rainer Maria Rilke, que foi de fato seu amante e um dos homens que ela mais considerou ter amado, confrontavam-na com promessas de união e amor eterno. Apesar de ter optado por uma casamento de fachada com o linguista Friedrich Carl Andreas, Lou foi sempre muito fiel ao seu próprio ideal e isso transparece em tela: uma idosa muito ciente da importância de seu trabalho e escolhas de vida, algo quase raro quando se trata da biografia de mulheres.
O roteiro de Susanne Hertel e Cordula Kablitz-Post se estrutura em trazer essa força da personagem colocada em tela. Apesar de perder o ritmo em vários momentos em que se estende o desenvolvimento do temperamento de Lou e suas relações com a mãe e os homens, o filme ainda consegue construir uma cinebiografia em que a vida de uma mulher é tratada através de suas obras e planos próprios, contados através do um olhar particular, que encara o espectador de volta. Digo isso porque muitos dos documentários e filmes que retratam mulheres na história apenas olham para essas mulheres, sem permitirem que elas mesmas se definam e se construam como personagens autônomas.
Mesmo quando reconstrói cenas como a famosa foto de Lou, Nietzsche e Paul Rée, com ela chicoteando os homens ou o intenso romance com Rilke, a protagonista não corresponde a espera de que sucumba a qualquer ideia romântica que tenha sobre a sua vida. É muito necessária a construção da protagonista para além de sua existência, sempre implicada a esses homens famosos. A biografia da escritora, antes de tudo, misturou-se com seus trabalhos filosóficos e psicanalíticos, faltou apenas essa abordagem em tela: sua obra e vida intensamente conectadas, servindo de base uma para a outra. Infelizmente nenhum título é citado durante o filme.
As atrizes Katharina Lorenz e Nicole Heesters trabalham em consonância, atuando nas duas fases adultas em Lou. Parece que treinaram uma dança, toda construção de corpo e expressão facial de ambas funciona muito bem. A direção de arte e fotografia também merecem destaques, não apenas pelo cuidado que um filme de época pede mas também pela opção estética de criar diálogo entre as fotos e cartões postais de Lou-Andreas com a forma que o tempo funciona na narrativa, usando-os nas elipses temporais.
Lou é um filme importante não apenas como revisionismo do cânone intelectual masculino sedimentado durante todo o século XX. É ainda um retrato de uma época, onde Lou-Andreas não foi a única mulher a querer independência para poder exercer sua intelectualidade como os homens tinham a liberdade de fazer.