Com ar de produção gringa, a série Manhãs de Setembro não poderia ser mais brasileira. A começar pelo seu título, que faz referência a uma das canções da cantora Vanusa, que serve também de inspiração para toda a trilha sonora da série e ainda se destaca como a voz da consciência de Cassandra, guiando a personagem interpretada por Liniker em suas decisões.
A trama acompanha a trajetória de Cassandra, uma mulher trans que trabalha como entregadora de dia e à noite canta em uma casa noturna. Mas a sua vida muda quando ela descobre ter um filho de um relacionamento do passado. É com um olhar atento e moderno que o roteiro atualiza essa premissa muito usada nos anos 90 em filmes que se desenvolvem no pilar da construção das relações familiares, um pouco parecido com Central do Brasil. O texto ainda se mostra muito certeiro com diálogos que não parecem terem sido escritos e tudo flui de maneira muito orgânica, tornando a maratona da série um caminho muito fácil.
Liniker entrega uma presença hipnotizante e a direção sabe conduzir muito bem seu nível de atuação para puxar todos os seus pontos fortes de performer e artista, mas também faz com que a gente reconheça um pouco da personalidade da Cassandra em muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+ que conhecemos na vida real. Não só ela, mas todo o elenco foi muito bem escolhido para a criação dessa São Paulo que vemos na tela. Os destaques ficam para Gersinho (Gustavo Coelho), o filho de Cassandra que tem um papel muito importante na evolução da personagem, conduzindo-a a buscar sentimentos onde ela nunca imaginou que tivesse. Ivaldo, interpretado pelo ótimo Thomas Aquino, é o namorado de Cassandra que representa, mais do que todos da série, o verdadeiro significado de um amor livre.
O sentimento e os objetivos de Cassandra mostram o que nenhuma produção mostrou com tanta clareza até hoje, que é a simples busca por cumprir seu papel no mundo como uma mulher independente, que trabalha, que é respeitada, que tem sua casa e suas coisas como qualquer cidadão. Foi de um cuidado muito inteligente do texto de não se vitimizar ou ficar preso num discurso de diversidade e militância a todo custo e mostra com naturalidade vários lados da comunidade como, por exemplo, um casal de homossexuais idosos, servindo como símbolos de resistência. A intolerância vem mais à tona por parte de Leide (Karine Teles), a mãe de Gersinho que não consegue entender a transição de Cassandra e a trata da forma como ela a conhecia antes como homem. Isso parece ser algo ultrapassado na história que lida com muita responsabilidade dos temas em um nível mais avançado de explicação, mostrando até como as crianças reagem a pessoas trans ou aos relacionamentos e pronomes de gênero de uma forma muito mais natural do que os adultos.
A poesia das músicas que embalam os episódios são um show à parte. Mesmo que pareçam desconexas em alguns momentos, por não serem tão literais, mas a experiência é de pura imersão numa cultura brasileira que não deveria ser esquecida e se torna um presente aos amantes da mpb e do reconhecimento dos nossos talentos nacionais. Josefina Trotta, entregou uma obra de extrema importância para o nosso audiovisual e não teria uma outra plataforma, que não a Amazon Prime Video, para que essa história visse a luz. Vale a pena cada minuto.