Em muitos momentos históricos, mentes revolucionárias ergueram seu semblante ao alto e, certas de suas ideias, proferiram seus próprios manifestos. Algumas dessas declarações ficaram muito famosas, como o Manifesto do Partido Comunista ou o Manifesto Surrealista, de Marx e Breton. Muitas ideias, de mulheres e homens, foram legitimadas na História por suas ousadas opiniões e ditames de novas regras e olhares. Esses discursos são pouco lidos hoje em dia e vários se perderam no tempo ou foram esquecidos. Em Manifesto, do diretor Julian Rosefeldt, Cate Blanchett recaptura os principais manifestos do século XX e interpreta-os como monólogos do contemporâneo banal e cotidiano.
São treze personagens diferentes que se intercalam em tela, sempre proferindo manifestos divididos em blocos históricos. O filme foi concebido como vídeoinstalação, portanto, a narrativa fílmica é polifônica, cheia de recortes, pronta para funcionar em peças separadas no museu. Mas, como filme, ela é amarrada pelo tema central dos monólogos: o conceito e os limites da arte em vários momentos da História. Seja na concepção do Marxismo, no final do século XVIII, ou nos princípios do Dogma 95, a arte – e tudo que se constrói sobre ela – é ponto de partida para a nascimento dos manifestos e a construção de cenas cotidianas que, aparentemente, nada tem a ver com a arte, pelo menos não com aquela guardada nos museus.
O manifesto, antes escrito influenciado pelo espírito de cada tempo e compartilhado entre os pares, aqui ganha movimento e dimensões entre o passado e o contemporâneo. A arte e a vida corriqueira podem dialogar? Sim, deveriam. Em muitos momentos de Manifesto os discursos que Blanchett recita são irônicos, satíricos e deslocados. É como se em tempos contemporâneos, onde uma operária sai de madrugada para trabalhar, com um olhar cansado desde que levanta da cama, a arte fosse apenas um ruído no meio da multidão. Em outros momentos, o discurso do que a arte deve ser funciona certeiro: uma ventriloquista que simula o real – os bonecos são incrivelmente iguais às pessoas retratadas – intercala Breton e Lucio Fontana como se as palavras não fossem decoradas, mas sim seu próprio argumento de existência.
Justamente na reinterpretação de textos já datados, muitos escritos no calor de tempos de crise e ímpeto, é que os manifestos ganham novas vidas, novos sentidos e estímulos. Manifesto não pretende ser ruptura entre o texto intelectual, já fossilizado numa cultura canônica, e as imagens que simulam o real. Nem sempre os discursos são suportes para as esquetes apresentadas, mas sempre cumprem seu ofício de causar impacto, incômodo ou estranhamento, cumprindo a função importante de receber atenção.
Para Aristóteles, o animal falante é um animal político, o discurso exige a vocalização e é aí que entra o corpo e performance de Cate Blanchett. A atriz é todos os discursos, ela performa cada palavra da arte, desde aquele que se reivindicada como algo único, feito com fidelidade até o nada é original, clamado pelo cineasta Jim Jarmusch. A escolha da atriz é deliberada, não apenas pela sua versatilidade já comprovada mas também por colocar em cena uma mulher incorporando os mais diversos papéis orquestrados por manifestos escritos e colocados, em sua maioria, por homens que ditaram os caminhos da estética. O contraponto de classe e gênero proposto pelas pequenas cenas cotidianas funciona muito bem com a voz potente da atriz, como se chamasse o discurso a dialogar de perto com a força da vida comum.
Manifesto é uma outra experiência no audiovisual, entre a instalação das artes plásticas e a narrativa fílmica. Rodado em apenas doze dias, não traz apenas discursos mas também os modos de fazer. Rosefeldt filmou em poucas locações e, mesmo assim, conseguiu propor uma estética própria, um tom pós-apocalíptico, partindo de ruínas de grandes construções, metrópoles vazias, arquiteturas imponentes e modernistas, indo até a estranheza de vidas privadas.
O filósofo francês Jacques Rancière fala da importância do comum partilhado nas artes, talvez seja nessa partilha que o discurso do manifesto na arte faça sentido, mesmo que pertença a outro tempo, ele provoca e evoca a indignação daquele que a profere. Quando, da boca de uma mãe conservadora, que reza na mesa com seus filhos, sai o inflamado discurso de Andy Warhol sobre absolutamente tudo ser arte, percebemos que ela está mesmo em todo lugar, como uma entidade. É justamente isso que Manifesto coloca, ainda mais em tempos de censura da arte, ela não como ruptura da vida e sim uma reinterpretação da mesma.