No Brasil, mesmo que disfarçada ou soterrada, a história colonial persiste. O fantasma da colonialidade não está apenas nas relações sociais e de trabalho cotidianas, mas rondando a materialidade de cidades por todo o país, mesmo quando se tenta maquiá-las. Praia Formosa, primeiro longa ficcional de Julia de Simone, começa com filmagens de obras no Rio de Janeiro, no começo da década de 2010, no que se chamou de revitalização da região portuária para o porto maravilha. Parece irônico, mas é justamente na demolição para a construção de algo novo que o cais do Valongo ressurgiu.
Um cais que foi idealizado justamente para fugir dos olhares da elite escravagista, da cidade que queria ser europeia e da família real que estava chegando, fugida, no país, no começo do século XIX. O cais do Valongo recebia os escravizados e fazia o comércio das pessoas nas casas coloniais que circundam a região que hoje é centro do Rio de Janeiro. Casarões imponentes, com portas e janelas enormes, hoje instagramáveis, tinham uma única função: comercializar pessoas. É com a ideia de imponência de uma casa colonial que Praia Formosa parte para contar uma história de irmandade entre duas mulheres que abolem a lógica do tempo para se encontrar.
O filme aposta na anulação do tempo e espaço cartesianos para trazer Muanza (Lucília Raimundo) e Kieza (Samira Carvalho) numa conexão que só pode se realizar com o ressurgimento do Valongo. Houve um tempo em que as duas mulheres conviveram e prometeram partir juntas do porto da Praia Formosa. Muanza não consegue se desvencilhar de Catarina, uma sinhá portuguesa e Kieza lhe deixa uma carta, prometendo que vão se encontrar.
Praia Formosa opera esteticamente tanto na travessia desse tempo até o encontro – um tempo espiralado –, quanto na construção da relação entre Muanza e Kieza, duas mulheres que não falam a mesma língua mas quando tratadas como iguais pela escravidão, se irmanam. A casa onde Muanza ainda está presa (acordando todo dia na mesma cena) está deteriorada pelo tempo, é ruína colonial. Como num filme de ficção científica, as duas vão deixando rastros uma para a outra em camadas diferentes de tempo, como se tudo que está soterrado irá sempre retornar, ou se encontrar, em algum lugar.
O filme é um trabalho coletivo e isso se torna muito presente em Praia Formosa. Talvez pela oportunidade de ter visto e ouvido a equipe durante o festival Olhar de Cinema de 2024, se tornou perceptível que mesmo partindo de uma pesquisa da diretora com as modificações da cidade, toda a parte técnica e de roteiro são imprescindíveis. Enquanto Muanza está dentro da casa colonial, presa com Catarina, a fotografia, a direção de arte e de atrizes apostam tudo na luz e no corpo que desliza pelas ruínas, faz a comida, limpa e dá suporte à sinhá. Também Catarina, como uma assombração que é, insiste nas roupas rotas de uma elite ultrapassada mas que briga em seguir dando ordens. Destaque também para o trabalho com figurino que faz a narrativa de Praia Formosa deslizar entre qualquer possibilidade de gênero cinematográfico, com uma boa dose de insistências na materialidade (o concreto da cidade) da História antes de tudo.
Antes de qualquer coisa, Praia Formosa é um tipo de experiência cinematográfica que nos convida a pensar a colonialidade fora da lógica de narrativas hegemônicas. Não vá ao cinema esperando uma história com começo, meio e fim. Tudo ainda está acontecendo e ao mesmo tempo; a história e a colonialidade estão nas ruas que atravessamos todos os dias – como que a gente enxerga elas? Talvez uma das respostas esteja na nossa possibilidade de fabulação, sendo o cinema e a literatura um bom começo para isso.