Aquarius

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Não é de se espantar que "Aquarius" já estreie sobre o estigma da censura

Em dias sombrios como os recentes no país, apenas a arte pode dar luz e respostas para nossos anseios. Não é de se espantar que Aquarius, novo longa do pernambucano Kleber Mendonça Filho, já estreie sobre o estigma da censura, ainda mais em um paí­s na atual situação de golpe de estado como o Brasil. O sucessor do aclamado O Som ao Redor parece ser feito sob medida para tempos como esses, em que as liberdades são boicotadas em nome de vazias expressões como “ordem e progresso”.

Mais uma vez o Recife e o bairro de Boa Viagem sãoo os planos de fundo para a história contada por Kleber Mendonça Filho. Clara (Sonia Braga e quando jovem por Bárbara Colen) é uma crí­tica de música, oriunda de família de classe média alta, moradora do edifício Aquarius, tradicional na bela praia da capital. Desde o principio o espectador é levado a assistir o filme não apenas com os olhos de Clara mas através do olhar dela, acompanhando um breve tratado de afetos ao longo das décadas, construindo a relação com o espaço chamado de lar.

Com o crescimento da capital de Pernambuco, percebe-se o aparecimento de arranha-céus de luxo à beira da praia, logo Clara se vê sendo a última moradora do prédio e assediada pela construtora que anseia pelo mais novo empreendimento da região. A gentrificação dos espaços como um câncer urbano já era um ponto explorado no filme anterior, mas em Aquarius, Kleber e equipe se preocupam em tratar não apenas de um sistema cruel e predador, mas sim de como o próprio ser humano alimenta essa lógica, dando comida na boca. Cada frame, plano e gesto no longa tem sua precisão certeira, cortando fundo como lâmina. O filme se apropria de pequenas peculiaridades do cotidiano para colocar em pauta – como se sentasse de frente para o espectador, o inquirindo – questões que passam pela gentrificação urbana, o corpo da mulher e a estética do real, o sexo na terceira idade até a eterna luta de classes que no Brasil – e especificamente no caso de Recife – é a uma briga desigual entre os senhores do engenho e os subordinados.

Se em O Som ao Redor havia uma série de personagens que eram a composição da tela pintada de uma única quadra no bairro, aqui há¡ uma falsa ideia de que Clara é a protagonista e que o filme seja sobre ela. Mesmo que os coadjuvantes apareçam apenas quando ela os encontra, são eles que mobilizam a construção da trama. Um dos pontos interessantes, bem explorado também por Anna Muylaert em Que Horas ela Volta?, é o protagonismo que pessoas até entãoo consideradas sem identidade, ou com um peso relativo em uma narrativa, são fundamentais para o desenvolvimento da trama. Em Aquarius, Clara não tem dificuldades em flanar pelos lugares e prestar atenção no todo, sempre lembrando de seus privilégios e ouvindo o outro. Mesmo quando esse outro são os que querem tirá-la de seu lugar, vendendo mentiras sobre conforto.

Sem dúvida Sonia Braga é o centro de Aquarius não apenas por provar estar no auge de uma maturidade aos 66 anos, mas por carregar o estigma de um mito de beleza e sexualidade e aqui, literalmente, despir-se e tornar-se um síbolo de resistência. A atriz entrega uma Clara que trabalha com o corpo todo, mostrando do que uma boa direção de atores é capaz de fazer. A protagonista não permite que nenhum personagem do filme se relacione com ela sem ter uma relação direta e fundamental na trama, desde o cuidado com o porteiro do prédio, a fiel empregada que perdeu o filho, até a tia de quem herdou a força e o cuidado com o passado, ninguém passa impune à sua existência e vice-versa. Todo o elenco do filme trabalha bem, inclusive os antagonistas como Diego (Humberto Carrão) que representa toda uma classe de jovens dominados por ideais de empreendedorismo e treinados como se estivessem indo para uma guerra, só que aqui em busca de dinheiro e reconhecimento.

O leque de temáticas em que Aquarius perpassa é grande e nem por isso soa prolixo em algum momento. O filme consegue amarrar bem todas as mazelas expostas em tela, preservando a narrativa e sempre aproveitando todo o espaço fílmico. Sejam móveis, uma música que toca na vitrola de Clara ou um vulto que passa pela cozinha, em cada cena o espectador se depara com um ponto-chave que compõe toda a grande obra que é o filme.

Kléber Mendonça Filho se consagra como um dos grandes diretores do cinema contemporâneo brasileiro ao entregar um filme como Aquarius, já envolto sobre um manto de polêmica na sua primeira exibição no Festival de Cannes desse ano. Não há¡ medo na construção da narrativa e muito menos em expor as jogadas sujas que o poder pratica. Mesmo que o ponto em questão seja um edifício velho – ou como diz a personagem: Quando você gosta é apenas vintage, quando você não gosta é velho – em meio a uma cidade que quer se modernizar, o assunto aqui são as manobras de poder que utilizam falsas ideologias humanistas, visando apenas o lucro. Aquarius revela as minúcias dos pilares das hierarquias, oriundas de séculos, no Brasil. Kléber Mendonça Filho não apenas as expõe mas também deixa claro que esses pilares estão sendo comidos por cupins e tendem cair a qualquer momento.

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