Fome

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"Fome" é experimental mais por consequências, e um cinema híbrido por escolhas

O que é fome? Um embrulho no estômago, a falta e a necessidade de algo, é comida, mas também dignidade. Como se acaba com ela? Apenas com refeições? São muitas as reflexões em torno do conceito de fome – palavra curta mas que provoca grandes cataclismos – e o seu antônimo é a sensação de sentir-se satisfeito. Mas a satisfação é uma das maiores incógnitas da vida. Se há comida, sente-se a falta de bebida. Se há dinheiro, sente-se a falta de liberdade e assim se seguem os antagonismos. O longa “Fome”, de Cristiano Burlan, usa a ideia de vazio a ser preenchido para questionar – e fazer uma bela autocrítica – onde começa e termina a ficção, ironizando muitos clichês do cinema de documentário brasileiro contemporâneo.

Um mendigo idoso (Jean-Claude Bernardet) arrasta um carrinho de supermercado por São Paulo. A metrópole barulhenta e tumultuada aqui é apenas um cenário onde o homem se movimenta e interage, ela não é vilã e muito menos um lugar seguro. O benefício do anonimato permite que esse homem dance, grite e questione as pessoas por onde passa, até que alguém que conhece o seu passado o encontra e começa a enfrentá-lo. Por que alguém largaria uma vida confortável para perambular pelas ruas, ainda mais sendo idoso?

Malbou, Joaquim ou Jean são as facetas diárias que o homem assume pelas ruas. Ora ele é uma canção antiga francesa, um idoso amargo que não teme ser grosseiro ou apenas um professor da USP, que lecionava teorias cinematográficas e se sentia vazio. O silêncio de “Fome” – uma câmera que acompanha o homem e seu carrinho, apenas observando – é quebrado por alguns depoimentos de moradores de rua, alberguistas e reflexões do idoso. As vozes simplórias documentadas se chocam com a forma que o idoso se comunica bem, usando referências intelectuais e reflexões diante da vida. “Fome” não permite que o espectador seja passivo, ele quer que ele se questione sobre o homem retratado em tela e suas relações com a mise-en-scène proposta. Onde começa e termina a realidade do apresentado? Isso depende de se você já ouviu falar de Jean-Claude Bernardet ou sente fome de saber.

Bernardet nasceu na Bélgica, mas vive no Brasil desde os treze anos. É um dos mais importantes críticos brasileiros, e para ele o desconforto e a total quebra de regras é o que rege o bom cinema. Para Bernardet, a maior crítica ao cinema de documentário contemporâneo se refere à exploração da miséria do outro. Para ele, o problema está em se trabalhar menos com dispositivos políticos e apelar mais para a piedade, um consenso de bondade e lamentação. “Fome” funciona bem como uma arma crítica a esse tipo de cinema e à própria noção de documentário entre o real e o inventado. Em várias cenas, o idoso se relaciona com terceiros usando a sua identidade além da tela, mas nunca a confirmando. Em outras cenas, ele expõe sua crítica de classe: em determinado momento, um casal piedoso sai de um restaurante caro e leva consigo os restos do jantar. Ao avistarem o idoso dormindo na rua, o acordam e lhe jogam a comida; ele irritado, vocifera: “Eu pedi algo? Eu disse que estava com fome?”

O diretor Cristiano Burlan, em 2013, ganhou o prêmio de melhor filme no festival de documentários “É Tudo Verdade” com o longa “Mataram meu Irmão”. Há algum tempo ele mantém diálogo com Bernardet sobre para onde o gênero documentário estaria caminhando, se a ideia de reportagem não estaria contaminando o projeto de muitos realizadores. E “Fome” se apresenta como um resultado desse diálogo, ora mostrando as reflexões da mão do diretor – junto com os roteiristas que ficam na frente e atrás da câmera -, ora reforçando a crítica de Bernardet em relação ao cinema, resultando em uma composição bem orquestrada.

“Fome” é experimental mais por consequências, e um cinema híbrido por escolhas. Apesar de não fornecer grandes respostas sobre o mendigo Mabul, Francisco ou Jean, ele nos dá a visão periférica do personagem que joga uma reflexão sobre o cinema e o papel do documentário diante o absurdo da realidade, principalmente quando ganha status na tela. Não há pena, nem exploração e muito menos benevolência. Há apenas o cinema e a riqueza de mostrar o lado humano, o corpo político que reage e pensa nas pessoas. Um prato cheio para quem tem fome de se sentir instigado à reflexão.

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