Letra Maiúscula

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O diretor romeno Radu Jude dá continuidade ao trabalho potente com arquivo, aqui contrastando discursos históricos.

filme visto durante a 9ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

O uso de imagens de arquivo no cinema contemporâneo tem se tornado uma ferramenta potente para propor outras visadas estéticas para as narrativas contadas pelas principais mídias de cada época. De fotos anônimas durante o avanço da segunda guerra mundial a imagens de propaganda de ditadura, o diretor romeno Radu Jude tem sido hábil e criativo ao pensar críticas para as narrativas oficiais no seu país. Em Nação Morta (2017), por exemplo, juntou fotografia de pessoas anônimas e leitura de uma carta escrita por um médico judeu para contrastar o que se chama de história oficial do avanço do fascismo na Romênia, durante a segunda guerra. Seguindo uma sequência de filmes sobre regimes totalitários em seu país, o diretor apresenta Letra Maiúscula, juntando teatro e imagens de televisão para tratar da ditadura de Nicolae Ceausescu, entre 1974 e 1989.

No longa anterior, o Eu não me importo se entrarmos para a história como bárbaros (2019), Jude já trouxe o teatro como forma estética de pensar o passado, principalmente sobre eventos que ficam adormecidos na memória coletiva. Se no filme citado a protagonista, uma diretora de teatro, se vê em crise com o público e a própria arte, em Letra Maiúscula o teatro é a única performance artística possível – justamente por uma certa artificialidade – em contrastar com outra: a da propaganda de regime ditatorial. Ao contar a bizarra situação da condenação de um adolescente por ter escrito, em 1981, a frase “Queremos justiça e liberdade” em um muro de uma cidade de interior, Jude expõe não apenas a rigidez e a violência verbal de um regime ditador, mas também a estética narcísica derrisória do mesmo. 

Letra Maiúscula, baseado na peça de Gianina Carbunariu, faz uma colagem dos depoimentos  e relatórios de segurança oficiais do jovem Mugur Calinescu – assim como de seus parentes, amigos e delatores –  com material audiovisual produzido por e durante o regime na época. Essa montagem rimada de teatro-arquivo dá uma dimensão de como o rídiculo e o exagero funcionavam diante das exigências de um estado ditador, totalmente impotente diante da liberdade de expressão. Atores interpretam delatores e delatado, diálogos que se tornaram públicos como uma conversa entre mãe e filho diante do ocorrido se apresentam mecânicos e visivelmente manipulados para satisfazer as pessoas entrevistadoras. Colados às cenas de palco, mais sérias e estáticas, entram os vídeos de programas de TV e de propaganda, com cenas claramente montadas, sobre uma ideia de bem-estar que se vivia nessa época. Os relatos de Mugur e sua família, mesmo que nitidamente construídos sob um discurso que pretende escapar de uma punição, falando apenas o necessário, são contrastes às cenas filmadas, onde as pessoas sorriem e falam da alegria de se viver no país.

Radu Jude demonstra uma habilidade em manipular arquivo para pôr em xeque as memórias coletivas. Ainda mais se levar em conta o quanto eram efêmeros os programas e cenas de televisão antes da internet, de como as imagens são potentes no momento da transmissão e depois se perdem. Ao mostrar essas cenas, quase que ilustrando a peça encenada em tela, o diretor questiona os discursos que estão em disputa na História, tirando quem assiste de qualquer lugar de conforto. Letra Maiúscula tem um diálogo forte com os filme mais recentes do diretor e funciona muito bem para mostrar que Jude não tem interesse em abrir concessões para nenhum momento histórico da Romênia, sendo que já tratou do fascismo, do comunismo e da retomada de ondas conservadoras contemporâneas. É uma espécie de realizador da memória, mostrando várias facetas performáticas dessa que é uma jóia bruta que no decorrer da História vem sendo manipulada das mais diversas formas.

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