Sem Chão

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"Sem Chão" traz a visceralidade brutal com que o exército israelense trata os palestinos da Cisjordânia há gerações

Provavelmente uma das melhores traduções para títulos de filmes nos últimos anos, Sem Chão se anuncia como algo que de fato é: gerações de pessoas palestinas – aqui, especificamente a região da Cisjordânia – que filmam suas condições de nomadismo forçado, também conhecido como o resultado do sionismo colonizador praticado por Israel há mais de meio século na região. A condição de não ter chão remete a vários sinônimos em português brasileiro como sem terra e sem teto, nada incomum no campo ou na cidade desse país enorme. Portanto, o que se passa na Palestina não é distante de nós e Sem Chão deve ser sim esse nó na garganta das imagens que tremem e correm pela tela.

Dirigido por quatro pessoas, duas palestinas e duas israelenses, o filme carrega um tipo de protagonismo entre o ativista palestino Basel Adra e o jornalista israelense Yuval Abraham. Basel cresceu com sua imagem diante das câmeras caseiras, não pelos motivos corriqueiros de registros de crianças e famílias, mas por estar crescendo em território de violenta ação sionista e o pai ser um ativista. Apesar de tudo e de tanto, Basel cresce, estuda, e trabalha na construção civil para se graduar em Direito. Mas que lugar existe para o advogado Basel, um homem jovem palestino que vive diante do ataque iminente de ser arrastado pelo exército robótico de Israel, se a sua luta mais básica envolve ajudar famílias desesperadas, que veem suas casas sendo demolidas por tratores, se mudarem para cavernas da região como viviam há centenas de anos atrás? O que vemos diante da tela é a ausência de dignidade e não dá para simplesmente levantar e sair da sala, só resta engolir a seco a nossa posição de quem assiste. O que fazemos depois de um filme como Sem Chão?

As imagens vão do brutal – um jovem que perde os movimentos diante dos nossos olhos ou outro que é alvejado por tiros de colonos junto com militares – ao sentimento de camaradagem sonhadora entre Yuval e Basel. Porém, quem idealiza é sempre aquele que vem do lado colonizador e que, apesar de sua real vontade de mudança, não entende como a luta exige paciência e ganhos pontuais ao transcorrer do tempo. As conversas entre os dois expõem a grande fenda que há entre gerações que cresceram tão próximas geograficamente mas foram expostas a condições extremamente diferentes. Ficamos nos questionando se há algum ponto possível para tentativas de pacificação. Esse questionamento também surge quando o filme ganha o Oscar de 2025, na categoria de melhor documentário: os discursos de Basel e Yuval são bem diferentes. Recomendo escutar o comentário da pesquisadora e crítica de cinema Carol Almeida sobre esse discurso e os pontos que juntam e afastam essa construção no filme.

Sem Chão apresenta trechos de alguns anos antes de outubro de 2023, quando se intensificaram os ataques de Israel, especialmente na Faixa de Gaza. É um excelente filme para ver de perto como o que a imprensa hegemônica mostra não é um ponto de ruptura em um momento de paz, e sim sucessivos e intermitentes ataques a gerações de palestinos que são desqualificados como seres humanos diante da lógica sionista. O que mais atravessa, no entanto, é a capacidade que essas pessoas têm de gritar, se desesperar, levantar, reconstruir, sorrir, seguir suas tradições e insistir em se manter vivas. As imagens precisam circular e a luta seguir em frente.

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