São raras as séries e filmes que conseguem construir uma jornada de personagem equilibrada e com um objetivo muito claro desde o começo, que surpreende para o bem. Esse é o caso de Special, a série da Netflix criada por Ryan O´Connell, que chega à sua segunda e última temporada. Mesmo com vida curta, a produção conseguiu fazer mais pelas minorias do que muitas outras séries que tentam emplacar militâncias apenas por audiência. Mas muito desse acerto no tratamento dos personagens é também fruto do autoconhecimento e do projeto ser tão pessoal para o seu criador, que praticamente conta suas experiências pessoais na tela.
Ryan, é um jovem adulto gay com paralisia cerebral que viveu uma vida de limitações e preconceito. E por mais que essa realidade pese mais para um lado romantizado do problema, a série busca justamente o contrário, usar o humor como equilíbrio para a frustração das situações diárias. Na primeira temporada, que nos apresentou uma abordagem totalmente franca sobre ser gay e deficiente no mundo, acompanhamos Ryan através da perda da virgindade aos 28 anos e o início da sua independência morando sozinho, que para uma pessoa com suas limitações é um passo enorme. Mas ainda assim, o mundo a sua volta cobra demais que ele saiba fazer coisas normais como varrer o chão, lavar a louça ou arrumar a cama. Aí entra sua mãe Karen (Jessica Hecht), que teve um destaque necessário nessa temporada, deixando de ser a pessoa que cuida de todo mundo a sua volta,para se sentir livre para viver o que tem vontade e retomar sonhos interrompidos pela gravidez de Ryan e pela demência de sua mãe.
Ao longo da vida, novos desafios surgem para os personagens e as mudanças os levam a questionamentos que antes não existiam. A relação de Ryan com sua mãe é um grande exemplo disso, de como eles se enxergam muito um no outro e começam a entender que independente do que eles façam, eles precisam aprender a viver da forma que os fazem felizes. Essa evolução se estende também à melhor amiga de Ryan, Kim (Punam Patel). A personagem representa uma millennial endividada que luta diariamente para se autoafirmar como uma mulher indiana e curvilínea que já não acredita mais nos relacionamentos e prefere não se apegar. A série fala muito sobre aceitação de uma forma construtiva, no sentido de que isso nunca é finito e ainda que use recursos de roteiro bem básicos como o clássico episódio em que os protagonistas viajam no fim de semana praticamente para de desentenderem, ou criam reações muito fáceis como recurso para seguir com a cena, a experiência consegue se manter em alta.
Os relacionamentos de Ryan também refletem muito as ciladas do mundo gay e como a abertura de possibilidades no seu relacionamento com Tanner (Max Jenkins) pode ser confusa até para quem vive nela por opção. Como Ryan está vivendo tudo isso pela primeira vez depois de adulto, a sua percepção evolui por estar exposto aos sentimentos e ao fato de não se sentir totalmente compreendido por sua deficiência. E nesse ponto é onde a série mais acerta em cheio ao reproduzir de forma brilhante desde as brigas, os encontros desconfortáveis, as referências hilárias e os comentários desanimadores, nos fazem entender as escolhas da trama para que o seu encerramento seja tão bom como foi.
Special é uma carta de amor aberta, sem preconceito, sem rótulo e com uma mensagem profunda de autoconhecimento, e o melhor de tudo é que não promove uma discussão unilateral sobre ser especial e nem peca pelo ativismo chato ou motivacional demais, mas deixa as interpretações abertas para todo mundo que vive ou não cada um desses problemas. Despreocupada com a pressão de um final feliz tradicional, a série mostra o poder de ser capaz de amar a si mesmo.