Todo mundo conhece a história de uma tia solteira, sem filhos, que abriu mão de tudo para cuidar de pai, mãe (ou ambos) idosos. A lógica do cuidado, em sua maioria, tem gênero: boa parte das pessoas que cuidam de idosos são mulheres. A historiadora italiana Silvia Federici, inclusive, tem uma frase famosa – que circula nas redes sociais impressa em um paninho de prato –, que diz, “isso que chamam de amor é trabalho não pago”, e vale para qualquer situação de pessoas cuidadoras. Em Tia Virginia, filme de Fabio Meira, acompanhamos algumas horas da vida de Virginia (Vera Holtz), uma mulher de 70 anos que cuida da mãe, lidando com duas irmãs e sobrinhos nos preparativos da véspera de Natal.
Feriados em família sempre são espaços difíceis de se ocupar, imagine quando há muitas coisas não ditas em uma família de três irmãs, um pai recém falecido e uma mãe com Alzheimer. Todas as rusgas podem tomar forma nesse momento, pois o espaço e a situação é propícia. Em Tia Virginia vamos descobrindo desde o começo – porque estamos dentro da casa – que a protagonista está cansada e também com tempo demais para pensar em sua amargura. Ela conversa com a mãe que nunca responde, cuida para que a casa permaneça a mesma que há décadas carrega a história da família, e tenta manter pequenas felicidades cotidianas. O filme começa com uma cena bastante emblemática em que Virginia arruma um relógio de parede analógico, mostrando que mesmo que o tempo pare por horas ou dias, sempre alguém pode colocá-lo para rodar novamente.
O filme funciona muito bem por dois grandes motivos: primeiro estamos dentro da casa dessa família, circulamos e ouvimos as conversas dentro dos quartos, cozinhas e escritório. Sabemos que os casamentos vão mal, que os sobrinhos precisam de dinheiro ou tem problemas com álcool, que as irmãs comentam coisas entre si escondidas. Estar dentro da casa faz quem assiste prestar atenção na dinâmica do lugar e das pessoas que ali vivem. A chegada das irmãs desestabiliza tudo porque são uma espécie de forasteiras que querem a nostalgia de um passado que não existe mais. Inclusive, elas mesmas não querem mais habitar aquele lugar, mas querem que alguém faça a manutenção do pouco que elas conseguem ainda manter o controle.
O segundo motivo de Tia Virginia ser bem sucedido é o elenco muito bem dirigido. Vera Holtz protagoniza, Arlete Salles e Louise Cardoso são as irmãs coadjuvantes. As três atrizes, conhecidas principalmente por grandes personagens na teledramaturgia brasileira, entregam tudo que podem. O trio dá tão certo que, como de costume nas novelas, nos apegamos aos seus atos e discursos, rimos e enlouquecemos também. Vera Holtz, famosa por sua performance icônica, vai escalando o protagonismo: assim como adentramos na casa conhecendo ela, também vamos entendendo cada atitude que toma em nome de assumir a sua agência, aos 70 anos de idade, ávida para viver. Destaque também para a participação de Antônio Pitanga – que entrega, em vários momentos, o que há diante dos fatos –, e de todo o resto do time enxuto, mas que funciona sem sobras.
Fabio Meira, que já tem uma carreira como roteirista, segue neste filme alguns caminhos que já estava elaborando em Duas Irenes (2017), mostrando talento como roteirista que sabe conduzir estudo de personagem. Principalmente, trabalha bem com personagens dialógicos, seja com outros ou mesmo com o espaço, externo ou interno, como é o caso de Tia Virginia. Ambos os filmes mostram a complexidade de crescer e envelhecer diante de tudo que é esperado socialmente de meninas, mulheres e outros papéis dentro da lógica familiar. Por fim, em um país cada vez mais velho, segundo censo recente, Tia Virginia nos coloca para pensar sobre a inevitabilidade de envelhecer e encarar isso de forma tanto familiar/individual quanto coletiva, articulando questões de classe e gênero.