Em A Mulher que Nunca Existiu, do diretor Mehdi M. Barsaoui, encontramos a proposta de um possível cinema árabe (apesar da produção multilíngue) que mescla gêneros de entretenimento com nuances políticas bastante pertinentes. Aqui, no caso, a sensação de thriller está em todo momento, já que acompanhamos Aya (Fatma Sfar), uma mulher tunisiana que, beirando os trinta anos, tem um emprego precário na rede hoteleira e é cobrada pelos pais a ter um casamento que traga estabilidade para a vida de todos. Aya tenta levar uma vida considerada livre dentro da lógica de uma cultura em que mulheres se casam por meio de arranjos e refazem hímens em cirurgias plásticas clandestinas. Ela tem um caso com um homem mais velho e casado, também funcionário do hotel, e se vê enredada numa vida sem muita saída.

Até que, justamente na precarização da vida de trabalhadora, no transporte de funcionários, a minivan cai em um precipício, matando (aparentemente) todos os passageiros, menos Aya. Aqui adentramos no ritmo de suspense de ação clássico. Mesmo machucada, Aya vê a situação perfeita para recomeçar, ir embora para a capital Túnis e levar uma vida que minimamente possa ter controle. Ela rouba um dinheiro do cofre do hotel e ruma para a cidade para se tornar Amira.
Apesar da capital ser cheia de luzes, letreiros, carros e vida pulsante, muita da sujeira das grandes cidades do mundo também está em Túnis. A partir daqui parece que vamos ver uma mulher viver o seu melhor: o cabelo esvoaçante de Aya passa pela tela e ela se sai muito bem em situações simples e emocionantes da nova vida. Então, ao procurar e encontrar um novo lugar para morar, muito rapidamente ela se vê envolvida numa rede de prostituição e violência policial com milícias em uma boate. A partir de uma situação banal, Aya vai ser cobrada pela vida que deixou para trás.

O cenário pós-pandêmico, que levou a uma crise econômica mundial que ainda vivemos, se junta àquele que o país passava desde a chamada Primavera Árabe, com retrocessos democráticos, desemprego, recessão etc. Portanto, a situação de violência policial se soma ao arco narrativo da protagonista enquanto uma mulher arábe que tenta encontrar meios de viver uma vida mais autônoma. Aliás, apesar de não muito desenvolvida – e caindo muitas vezes no tom fatalista de sofrimento feminino –, as condições de mulheres naquele cenário surgem muitas vezes durante o roteiro, escrito pelo próprio diretor. Vários elementos considerados símbolos de sujeição naquelas culturas – como a burca e a cirurgia de reconstrução de hímen – são usados como instrumentos de fuga e maneiras eficientes para Aya deslizar entre mundos. Ao mesmo tempo, mulheres universitárias, aparentemente livres, são prostituídas para poderem sobreviver e ainda correm o risco de serem acusadas de imoralidade segundo as leis por simplesmente flertar com alguém publicamente.
Justamente, esses elementos fazem de A Mulher que Nunca Existiu um filme complexo e que entretém, usando a ficção como uma ótima possibilidade de se avistar outras culturas não tão distantes de nossos próprios narizes. Destaque não só para a direção da atriz Fatma Sfar – que apesar de sofrer tanto, se recupera de maneira incrível na última parte do filme –, mas também para os excelentes trabalhos de figurino de Randa Khedher, direção de arte e fotografia de Sophie Abdelkafi e Antoine Héberlé, que trazem textura para essa transição no limbo da vida de Aya, se tornando Amira e, por fim, Aicha (o título original do longa).




