A ditadura na Argentina foi uma das mais breves da América Latina – sete anos, comparados aos vinte e um do Brasil – porém, uma das mais violentas. Em Kóblic, o diretor argentino Sebastián Borensztein, de Um Conto Chinês, tenta correr por fora dos enredos sobre o assunto, humanizando um piloto do exército traumatizado por participar de uma ação cruel contra supostos inimigos do Estado.
O ano é de 1977 e Kóblic (Ricardo Darín), um exímio piloto, está no interior da Argentina fugindo do próprio posto. Após rejeitar uma ordem vinda de um superior, é ameaçado pelo sistema e obrigado a se refugiar num pequeno vilarejo ao sul. Mas, se o país vive sob a sombra dos ditadores, que perseguem e eliminam pessoas nas ruas da capital, no interior há um próprio regime que controla o lugar e não vê com bons olhos a presença desse estranho. Com esses tipos de violência, a explícita e a disfarçada, o filme tenta construir uma história protagonizada por um homem de natureza idônea, que se esforça em não ser corrompido por nenhum sistema.
Borensztein e o roteirista Alejandro Ocon colocam em cena essa luta do homem atormentado pelas escolhas e pelo próprio espaço em que foi relegado como militar. Se por um lado ele ama pilotar – e essa foi a sua escolha profissional – pelo outro, se encontra em um fogo cruzado quando sua profissão é subvertida em benefício da crueldade. É essa dualidade das escolhas – levando em conta que sempre geram algum efeito – que o roteiro de Kóblic se esforça nesse quesito: um homem atormentado pela sua necessidade de fazer o que é certo.
Mas se a premissa de Kóblic se mostra tão interessante, é uma pena que o desenvolvimento caminhe pelo terreno confortável do melodrama, se perdendo no enfoque da relação do piloto com Nancy (Inma Cuesta). Não que cada personagem, por si só, não possua material crítico suficiente. Ele como um homem que até há pouco servia ao exército com honra, mostrando que nem todos dentro de um sistema compactuam com o mesmo; ela como uma jovem violentada em família e traumatizada com sua situação atual. Mas juntos, infelizmente, não funcionam. O longa acaba caindo em um clichê romântico, se definindo apenas em uma fotografia belíssima dos pampas argentinos e um excelente trabalho de direção de arte e trilha sonora.
Mas há outros temas abordados em Kóblic que não deixam o filme se perder no romance proposto. Nepotismo, propina, abuso de poder e violência contra a mulher são tópicos que surgem no enredo. Por mais que o filme seja um drama em sua essência, o clima de thriller sempre está presente, uma sensação de perseguição como deveria ser corriqueiro nesse período de abuso de poder. Ricardo Darín poderia dar peso suficiente ao piloto Kóblic, mas parece que aqui foi usado apenas o peso do seu nome. Acaba sendo ofuscado pela interpretação dos antagonistas, apesar de todo o esforço em se manter fiel aos princípios.
Por fim, Kóblic é um longa que tenta disfarçar com romance um assunto polêmico da história recente da américa latina: as ditaduras – que ainda espreitam – e um bom número de afiliados a elas, que não compactuavam com as ações e se viam ameaçados. Mas também, o fato de que os regimes autoritários não se faziam sozinhos, mostrando um perverso sistema que funciona, inclusive, nos lugares mais ermos onde a força do dinheiro e dos sobrenomes prevalece. Se excetuarmos a camada romanceada, Kóblic é um filme que expõe a perversidade do poder.