No final do século XIX houve um boom na literatura escrita por homens, colocando mulheres como protagonistas, figuras que superassem um ideal feminino do momento, porém sempre punidas por essa rebeldia. Muitos desses livros se tornaram filmes durante todo o século XX, desde Madame Bovary, passando por Anna Karenina até Retrato de uma Senhora se apresentavam como narrativas inovadoras sobre a mulher na modernidade. Boa parte dessas obras traziam sintomas sobre a não absorção da mulher nessa transição entre o anjo do lar e a figura que passava a flanar pelas ruas, reivindicando um olhar opositivo diante da lógica masculina. É com esse cenário – a Inglaterra no período vitoriano – que Lady Macbeth, dirigido por William Oldroyd com roteiro de Alice Birch, retoma essa figura feminina de fim de século e impacta o espectador com a vileza contida numa figura tida como delicada.
Katherine (Florence Pugh) é uma jovem recém-casada no começo da segunda metade do século XIX. Vivendo no interior a jovem é profundamente entediada não apenas com a bucolidade do lugar, mas também com o casamento que, além de ser com um homem bem mais velho, ainda conta com a rejeição que o mesmo tem por ela. Devido a situações externas, o marido Alexander Lester (Paul Hilton) tem que se afastar da localidade, fazendo com que Katherine possa, pela primeira vez, tomar as rédeas de sua vida e experimentar suas próprias maneiras de se vestir, organizar a casa, dormir e se relacionar com os empregados.
Desde as primeiras cenas – da cerimônia, do jantar, da primeira noite, até toda a apresentação da personagem e de seu casamento – o longa trabalha a serviço de mostrar a forma em que a protagonista é domada como um cavalo selvagem. O cabelo penteado com força e o espartilho que comprime seu corpo deixam claro o deslocamento de Katherine com a vida que é obrigada a viver. Talvez a ideia de selvagem seja o tema que perpassa todo o longa, pois quando não se vê mais domada – e percebe que tem seu próprio poder com o marido longe – ela passa a agir de forma instintiva e impetuosa, não buscando por aceitação ou tendo resquícios de culpa. Exatamente o que impacta no roteiro de Alice Birch é que não se pretende agraciar o espectador.
Lady Macbeth é uma outra visão da personagem clássica de William Shakespeare, ainda no século XVII. A mulher, em busca de ascensão, que usa seu suposto poder para orientar o homem em atos de crueldade – não é nenhuma novidade na literatura e no cinema – faço referência à mais recente adaptação com Marion Cotillard. Mas aqui, a grande inspiração é o romance de 1865, do russo Nikolai Leskov: Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk. Nessa adaptação a roteirista Alice Birch consegue resolver qualquer previsibilidade costumeira na literatura do século XIX, incluindo nisso a russa, que pouco se preocupava com a moralidade ocidental. Mesmo que a trama central gire em torno de uma ideia da mulher entediada, que vive suas paixões até o limite – nesse ponto a roteirista até ironiza a ideia dos romances escritos por mulheres nesse período – o que a torna profundamente interessante é que destrói, sem perdão, todas as expectativas daquele que assiste.
As belíssimas cenas construídas, sempre colocando Katherine ao centro ou em posições estratégicas de canto brincam com o olhar clássico masculino promovido na pintura, por exemplo. Claro que isso não seria a mesma coisa sem a presença de Florence Pugh, que encara a câmera com um olhar decidido e irônico do começo ao fim, característica que não a coloca “como um homem” mas sim como alguém que não mede suas vontades e decisões. A direção de arte cai muito bem em Lady Macbeth, fazendo com que o espaço no filme não seja apenas contexto de época mas uma parte inerente do corpo da protagonista que circula, fazendo com que os coadjuvantes sejam peças a serem derrubados pela rainha que passeia pelo tabuleiro. Mas nesse ponto, da eliminação de peças no caminho de Katherine, várias questões de classe e raça podem ser pontuadas na construção do filme, não se sabe se pelo momento retratado ou por escolha do diretor e da roteirista.
Para quem gostou de A Criada do sul coreano Chan Wook-Park, o filme é um prato cheio, prometendo um diálogo interessantíssimo entre ocidente e oriente. O trabalho de Alice Birch e William Oldroyd funciona muito bem nessa recuperação de um clássico, que além disso é uma releitura de algo tão enraizado na cultura da Inglaterra como é Macbeth, o homem regicida que mata pelo poder. Vários elementos dessa cultura são superados em Lady Macbeth, o que talvez faça com o que filme funcione bem para o público atual, levado a encarar um outro olhar para a mulher vitoriana.