Mil Vezes Boa Noite

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A cena inicial de “Mil Vezes Boa Noite” (Tusen Ganger God Natt, 2013), primeiro longa falado em inglês do diretor norueguês Erik Poppe, mostra um ritual de purificação de mulheres islâmicas a fim de ficarem prontas para se tornarem mulheres-bomba. É inexplicável a forma brutal e sensível em que a câmera percorre o ritual mostrado em sequência e como essa cena dialoga bem com os conflitos da protagonista. A cena compete com a câmera fotográfica de Rebecca, uma prestigiada fotógrafa de guerra que acima de tudo não deixa de colocar a sua própria vida em risco pela denúncia de uma boa foto, assim como essas mulheres em nome de Deus.
O roteiro de Harald Rosenlow Eeg em “Mil Vezes Boa Noite” trabalha em criar várias situações de conflito entre Rebecca, munida de sua câmera, registrando o mundo externo, principalmente regiões de conflito intenso como Kabul e Quênia e o seu papel como mulher e mãe em o microespaço do lar. Erik Poppe usa de sua experiência como fotógrafo de guerra para dar vida a protagonista, interpretada pela ótima Juliette Binoche, que vive entre bombas de países em conflitos e uma pacata cidade litorânea do interior da Irlanda, onde ficam suas duas filhas e o marido, um biólogo marinho interpretado por Nikolaj Coster-Waldau, o Kingslayer de Game of Thrones.
O ponto de destaque no enredo de “Mil Vezes Boa Noite” é o fato da mãe ter uma vida extra-lar e ser a protagonista de uma série de eventos que ultrapassam dramas familiares. O longa apresenta uma formidável inversão de papéis deixando o espectador confuso sobre Rebecca, assim como ela está consigo mesma. Não é difícil se pegar pensando que a fotógrafa é negligente com as filhas e a família. Mas e se fosse Marcus – o marido – a sair para regiões conflituosas, que arriscasse sua vida pela profissão, ele seria negligente ou um herói?
Quando em cena dentro de um conflito, Rebecca se mostra uma voyeur, uma obsessiva pela imagem perfeita, alternando a apresentação da personagem ora como uma artista, pessoa que não mede seus atos para fazer seu trabalho, ora como um ser humano se deparando com valores culturais totalmente alheios aos seus. E é essa dualidade que tenta reger toda trajetória do longa, levando o espectador a entender que Rebecca é levada sempre por si mesma, mesmo que as escolhas não aparentem ser as melhores.
Mas apesar do excelente argumento e de uma ótima sequência inicial, “Mil Vezes Boa Noite” tem alguns problemas, principalmente em não conseguir se sustentar ou como um drama de guerra ou mesmo familiar. As personagens coadjuvantes não conseguem trazer empatia e dialogam muito pouco com a personagem de Binoche que toma o centro das atenções e que soa as vezes um pouco arrogante. O longa tenta ser denunciador de vários assuntos como censura na imprensa de fotos sobre o Taliban e os poucos reforços em acampamentos no Quênia, mas logo o foco familiar volta percorrer a tela. E por fim, apesar de Binoche ser grandiosa, ela aparenta estar um pouco desconfortável no papel de fotógrafa, a câmera parece no deixá-la à vontade.
De qualquer forma “Mil Vezes Boa Noite” não deixa o espectador impassível. Várias questões sobre alteridade são levantadas, não há como não encarar a protagonista como um pouco de nós espectadores. Talvez resida justamente aí um dos melhores motivos para se ver o longa: sentir o incômodo de enxergar o outro.

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