Mulher do Pai

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Apesar da ideia de família parecer ter uma definição rígida na sociedade, a verdade é que cada arranjo é organizado de melhor forma entre grupos de pessoas consanguíneas ou habitantes de um espaço. Explorando uma lógica que se desfaz e que exige que as pessoas se reorganizem, o longa brasileiro Mulher do Pai, da diretora Cristiane Oliveira, explora minuciosamente as mudanças sutis na vida de pai e filha, que se veem perdidos após a morte da matriarca da casa.

Em Mulher do Pai o olhar do espectador se volta atento para um universo micro: a vida da adolescente Nalu (Maria Galant), seu pai Rubem (Marat Descartes) e a avó. Aqui está em cena o tear da lã, o silêncio do trabalho familiar ou as reclamações da avó, que cuida de tudo sozinha. Os arranjos familiares ali são simples porém organizados e quase nunca questionados. Mas quando dá algo errado na equação, o que acontece? Vivendo num lugar distante, onde parece que há apenas silêncio, entre o extremo sul e a fronteira com o Uruguai, o trio que forma a família de Nalu vive dentro de sua própria lógica. A avó idosa coordena o lar para que a adolescente e o pai cego não precisem executar grandes esforços, até que ela morre e ambos tem que ser perceber dentro desse ambiente e entender como desenvolver, e limitar, seus papéis de pai e filha.

Há uma primazia dos gestos, da composição dos planos com os corpos dos personagens e até mesmo de figurantes. A construção do espaço entre pai e filha é muito bem orquestrado em cena, é ela que dita o ritmo do roteiro e a sequência da montagem. Fugindo de análises pontuais mais psicanalíticas, o filme aposta na leitura das imagens, da mise en scène construída quando pai e filha estão juntos, e em lados opostos, e a linguagem corporal dessa relação. O longa não se atém em colocar Nalu apenas como uma mulher que está vivendo a descoberta da sexualidade, como uma simples discussão de gênero e em conflito com sua responsabilidade de filha. Há mais preocupação estética – que comprova mais uma vez o bom trabalho de fotografia de Heloisa Passos, como no excelente Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo – que permitem, por exemplo, que o espectador preste atenção na velocidade do tempo, que funciona não apenas numa lógica de campo e interior, mas da própria ficção, permitindo que se possa olhar de perto as relações que não prestamos atenção na vida real.

Nessa ideia de construção de imagens, Cristiane Oliveira tem uma mão delicada – no sentido de esculpir a cena com precisão – que trabalha diretamente com a fotografia, fazendo com que as peculiaridades dos personagens sejam colocadas em questão na tela. O pai cego, por exemplo, é uma dicotomia diante da beleza do pampa gaúcho que ele não pode mais ver e é tão cuidadosamente colocado em tela diante de nós, quase que como uma imagem onírica. É muito bonita a forma em que o filme trata de um vazio de urgência urbana, mesmo na ansiedade adolescente de Nalu, das conversas sobre a capital, o Uruguai ou até na agonia do luto do pai e da retomada de sua identidade.

O filme de estreia da gaúcha Cristiane Oliveira ganhou vários prêmio em festivais no Brasil e no mundo e vai na contramão das discussões urbanas costumeira que colocam no centro o sudeste do Brasil. A Mulher do Pai propõe uma outra direção do olhar, construindo quase que uma tensão à costumeira espera de algum tipo de violência ou confronto em cena. O embate aqui está na urgência da atenção sobre a construção das relações, às vezes tão negligenciadas pela rotina. Não é um filme apenas sobre uma adolescente tentando lidar com o pai após a morte da avó, é um filme sobre perceber a si e o outro numa ideia de família sem obrigações sociais.

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