As histórias de terras prometidas são fundacionais para diferentes sociedades europeias. Vivemos em um continente que justamente foi uma dessas promessas divinas de vidas melhores e sabemos bem o preço da colonialidade. Talvez, essa ideia de promessa seja uma das coisas que move a história da humanidade como um todo, demonstrada nos movimentos migratórios. Em O Bastardo, o diretor Nikolaj Arcel adapta o livro “O capitão e Ann Barbara” (sem tradução ao português brasileiro), da escritora Ida Jesse, e ressalta a faceta de um militar dinamarquês solitário que, na segunda metade do século XVIII, decide provar que consegue colonizar uma região inóspita que hoje é conhecida como Jutlândia, entre a Dinamarca e a Alemanha.
Em 1755, o capitão Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), solicita uma autorização, junto à coroa, para plantar na região mais inóspita daquele país. Apesar de as autoridades acharem isso uma piada, acabam liberando para acompanharem até onde ele vai, já que ninguém deseja ir para aquela região. Porém, como se sabe, todo lugar, por mais inabitável que possa parecer, tem quem o privatize. Aquela região da Jutlândia na época era dominada por Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg), herdeiro de uma família aristocrática que não quer deixar de ganhar nenhum trocado dentro dos limites geográficos que acredita ser seu por mérito de herança.
Em O Bastardo Kahlen se constroi irredutível, mesmo com todo o sarcasmo esnobe e violento do aristocrata, e segue no seu projeto colonizador. O personagem é completo pela atuação rígida e direta – já conhecida – de Mikkelsen. Ludvig é homem do seu tempo e cultura, que para nosso entretenimento do século XXI vai desmontando a armadura conforme vai compreendendo que sozinho ele não vai tornar o terreno fértil para seu planos, muito menos irá combater o mimado Schinkel, uma figura desprezível como todo aristocrata. E é nessa trajetória, de entender que só é possível se mover no plural, que entram em cena as personagens de Ann Barbara (Amanda Collin), a pequena Anmal Mus (Melina Hagberg), grupos de ciganos e colonos. Apesar do capitão e Ann Barbara serem baseados em figuras históricas e reais, ela e a criança cigana Anmal Mus são parte da re-visão (muito bem vinda) histórica de personagens fora do escopo de sempre, masculino e branco. Ann, que surge como uma fugitiva do aristocrata mimado, se desenvolve habilmente como uma mulher com desejos e ímpetos, dona de si e vingativa. Já Anmal, sendo uma criança cigana e orfã também complexifica essa história de colonização que não escapa ao racismo.
Apesar de uma fotografia bonita que preza pela luz da região – focando bem menos nos cenários mais nobres e aristocratas –, e um roteiro que tenta construir uma história de redenção, O Bastardo cai nos clichês básicos de filmes históricos que anseiam por uma trajetória de heroi. O título do filme no Brasil já entrega uma das bandeiras que levaram Ludvig para a região: chamar a atenção do rei já que ele é um filho bastardo de nobre. Esse é um dos motivos que o torna irredutível e, muitas vezes, violento e cúmplice de outras violências. Em um dado momento o filme se torna cansativo por se esforçar demais em mostrar a trajetória de um militar que “venceu no final”. É possível que o distanciamento histórico e geográfico nos afastem, como espectadoras, da promessa do filme. O que também não é um problema, assim assistimos como colonizadas que somos, com olhar crítico e não apenas de satisfação.