O Homem de Argila

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"O Homem de Argila": Uma reflexão sobre arte, terra e transformação

Um homem por volta dos 60 anos de idade, grande, com um semblante fechado que transmite as marcas do tempo e do trabalho duro no campo. Para completar a imagem, um tapa-olho. Esse é Raphael (Raphaël Thiéry), protagonista de O Homem de Argila, filme dirigido por Anaïs Tellenne, que combina drama e reflexão sobre arte em uma narrativa repleta de camadas.

Raphael mora com sua mãe idosa numa propriedade de uma antiga família de posses no interior da França. Essa típica casa de campo, onde sua mãe trabalhou na juventude, reflete em sua fachada tantas marcas do tempo como o rosto de Raphael, além da decadência decorrente das transformações nos modos de vida da classe média francesa. O filme explora clichês familiares, como a relação entre mãe e filho: um homem de 60 anos, traumatizado pela perda de um olho, ainda vivendo com a mãe.

Outro clichê é a relação superficial de Raphael com uma mulher da comunidade. A rotina na casa de campo é retratada com imagens evocativas, como as tomadas do celeiro, do jardim e da fachada da casa. Embora visivelmente cuidadosas, essas cenas não adicionam nada de inovador à narrativa. São cenas que, apesar de bem apresentadas, já foram exploradas em muitas outras produções.

A reviravolta da trama tem início com a chegada da atual dona da propriedade, filha do casal falecido, que retorna após anos de abstenção, Madame Garance Chaptel (Emmanuelle Devos). Como a sinopse descreve, após sua chegada no meio da noite, a pacata e tranquila vida de Raphael nunca mais será a mesma. Mais um clichê, que não é o último. Envolta em mistério, a figura de Madame Chaptel desperta algo em Raphael. Gradativamente, novos elementos são agregados à relação que se forma entre as personagens, mas que prefiro deixar para que tirem suas próprias conclusões. A partir de agora, gostaria de chamar a atenção para o que o filme me tocou, me instigou a pensar.

Apesar de o roteiro estar centrado na figura de Raphael e sua jornada após o contato com Madame Chaptel, há uma grande reflexão sobre a obra de arte nesse filme. Determinadas cenas, ainda que não diretamente, levam o espectador a mobilizar o que compreende enquanto arte. Garance Chaptel é apresentada como uma artista excêntrica, criadora de obras de arte que desafiam o comum, o ordinário. Nesse sentido, me parece que a diretora procura promover essa reflexão: o que é arte?

Enquanto acompanhava a saga de Raphael, provocado e tocado pela arte e pela artista, pensava no embate entre terra e mundo no qual Martin Heidegger reflete em “A origem da obra de arte”. O filósofo traz o mundo como abertura e a terra como guarida, opostos mas numa relação constante e inescapável. “O mundo funda-se na terra e a terra irrompe através do mundo. […] O mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a sobrepujá-la. Como aquilo que se abre, ele nada tolera de fechado. A terra, porém, como aquela que dá guarida, tende a relacionar-se e a conter em si o mundo”. É dessa e nessa relação que se dá a obra de arte, para Heidegger. Sem a ambição de aprofundar nessa reflexão, há uma possível relação entre o embate terra e mundo, proposto por Heidegger, e a relação entre Raphael, Chaptel e arte. A figura de Raphael intriga e atrai o olhar de Chaptel, uma paisagem, como a própria personagem diz. É a terra ou, para usar o nome do filme em francês, o barro, que se fecha em si mesmo, dá guarida. Como o “mundo nada tolera fechado”, a artista busca essa abertura por meio da obra de arte. No fim, podemos acompanhar a transformação que a arte produz em Raphael e a busca de Madame Chaptel no revelar da obra de arte, o embate constante entre terra e mundo.

O Homem de Argila, mesmo em meio a clichês e narrativas um pouco desgastadas, pode levar a reflexões interessantes sobre arte e seu impacto na vida das pessoas.

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