Desde 2013 a Universidade Federal do Paraná tem programas que propiciam condições linguísticas e dão acolhimento a refugiados que vêm viver em Curitiba. Haitianos e sírios são a grande maioria, mas há também outros de vários países africanos e regiões que estão em conflito. Essa situação tem levado ao surgimento de novas discussões e produções artísticas, não apenas sobre a imigração em si, mas também sobre a (re)construção da identidade desses sujeitos que saem de seus espaços, deixando família e afetos para poder gozar de qualquer condição mínima de liberdade e paz. No documentário A Casa de Lucia, o diretor João Marcelo pretendia filmar os dois primeiros anos de Lucia e seu marido no Brasil, mas graças à uma ida emergencial dela ao Kuwait, para passar o Natal e virada de ano com a família, o filme tomou novas proporções.
Um projeto comum de documentário que, graças à urgência do acaso, muda a sua ideia inicial de roteiro e, consequentemente, a montagem. O que deveria ser um relato sobre as condições de Lucia como imigrante, torna-se um filme em que ela mesma se dirige, sobre o trânsito de vir e voltar dois anos depois e os efeitos disso na construção de sua própria subjetividade. Não há grandes formalidades na montagem e escolhas estéticas na A Casa de Lucia. No início, somos apresentados à figura central e seu marido, ansiosos pela ida dela para o Kuwait, onde se encontra a família, e em seguida temos uma espécie de snapchat sobre como se configura esse retorno ao lar, à família e ao cotidiano que ela deixou para trás, quando se casa e sai de Aleppo, na Síria, às pressas com a família do marido.
A condição de refugiada de Lucia é inegável, tanto quando ainda está no aeroporto esperando o voo, quanto já está com a família, e depois quando retorna ao Brasil e faz toda a rememoração dos últimos anos, ela se questiona sobre o passado e o presente. Um dos pontos altos do documentário é quando ela faz um balanço, diante da câmera de Skype em conversas com o diretor, sobre o seu lugar de pertencimento no mundo. Morando no Brasil, distante daquele tipo de conflito, ela consegue analisar a situação da Síria, do Kuwait e das pessoas que saíram e das que ainda permanecem. É um exercício particular dela e tem a ver com sua própria experiência, mas que configura várias reflexões sobre ser o outro e olhar de fora para si mesmo.
Claro que a experiência de refugiada de Lucia passa pela sua, e da família do marido, situação de classe. Como diz a matriarca de Era o Hotel Cambridge (filme sensacional sobre os vários sentidos de migração e refúgio) “Somos todos refugiados” mesmo dentro de nosso país. Lucia teve boas oportunidades de sair da Síria, chegar ao Brasil, ter condições de continuar estudando e se colocar nesse papel questionador que se desenvolve em tela. Muitos momentos em que ela mostra seu antigo emprego, casa e momentos familiares deixam claro que sua família tem boas condições apesar das crises civis que acontecem na região. No já citado documentário de Eliane Caffé, nos deparamos com imigrantes na capital paulista, em dificuldades de ultrapassar as barreiras não apenas de classe mas, principalmente, de raça. Mas isso não tira o mérito de A Casa de Lucia, pelo contrário, dá alento à diversidade das vozes e nos coloca a reflexão de quem são esses refugiados hoje no Brasil.
A ideia de João Marcelo de filmar a história de Lucia não veio ao acaso. Ela foi a primeira refugiada a conseguir transferência para uma universidade brasileira, a UFPR. O caso dela foi precedente e abriu muitas novas iniciativas – como as citadas no início – pelo Brasil, culminando em novas políticas públicas aos migrantes, refugiados e apátridas que circulam pelo país. Que muitas histórias possam surgir com essas novas produções, sejam de Joãos ou Elianes. Para pensar não apenas dos que vem de fora das nossas fronteiras, mas também naqueles que se sentem sem lar mesmo dentro do país.