As ideias de um cinema verdadeiro, que trata do real tal qual ele é, e o fascínio na busca do quase ficcional dentro desse real que origina ao roteiro de documentários, se juntam em “Anna”, dos italianos Alberto Grifi e Massimo Sarchielli que ganhou status de culto desde a metade da década de 70 do século passado. Não por menos, depois do lançamento em 1975 o filme recebeu uma série de críticas, foi esquecido em porões e finalmente restaurado em 2011, comprovando que as cerca de onze horas de filmagem dos italianos resultam em uma das experiências mais interessantes do cinema do século XX.
Na primeira exibição do documentário no 5º Olhar de Cinema, em Curitiba, o cineasta Gustavo Beck se mostrou emocionado em poder oferecer o filme ao deleite do público, afirmando que ninguém sairia igual depois da sessão. Realmente, é bastante difícil sair imune de quase quatro horas de filme, curiosamente montadas sobre perspectivas que alternam entre o privado e o público de grupos marginalizados – mas também conscientes e politizados – numa Itália que mostra diferenças sociais gritantes, principalmente de classe, e o surgimento de movimentos sociais como resposta.
A arquitetura barroca da Piazza Navona é ponto de partida e retorno para o objeto que impulsiona o longa: a adolescente Anna, 16 anos, viciada e doente que desperta a curiosidade do olhar dos diretores que a levam para casa, cuidam do fim da sua gravidez e de certa forma exploram as suas vulnerabilidades em prol da arte do documentário.
É difícil manter a empatia diante da câmera vacilante desses homens, principalmente quando o objeto explorado é uma jovem mulher, claramente resultado de uma série de situações que não permitiram que ela tivesse uma estrutura básica para compreender e lidar com as agruras da vida.
Um dos pontos mais interessantes de “Anna” é o choque entre a utopia e a realidade. De um lado temos três homens com uma câmera e uma espécie de roteiro livre, que passeia entre a arte e ideologia. Ao centro, jovens com ideais libertários, que vivem pelas ruas de Roma discutindo política e sociedade, e de outro lado está a jovem Anna que, apesar de sua indumentária hippie do momento, mal entende seu lugar na sociedade e apenas age por instinto de sobrevivência.
“Anna” é o primeiro filme italiano que usou uma câmera portátil, graças às inventividades do pai de Grifi, que colaborou com outras parafernálias que permitiam as filmagens externas. Nessa busca pelo registro percebe-se a verve dos diálogos propostos ainda no neorrealismo, tão caro aos italianos. Mas mesmo com essas influências, a mágica em “Anna” está na disputa do centro entre a exploração da figura da adolescente e suas crises filmadas intimamente – preste atenção em uma cena da garota tomando banho – e o envolvimento dos realizadores, ora na frente da câmera, tocando o objeto filmado, ora atrás, conversando e dando ordens a ela.
O processo – que para o senso comum deveria ficar invisível ao espectador – das relações entre temática e cineastas se mostra vulnerável em “Anna”, algo que ainda viria a ser explorado no cinema das próximas décadas, colocando a ficção e o real em zonas de conflitos. Mas independentemente dessas questões técnicas, o sorriso infantil da jovem Anna é o que perturba depois de quase quatro horas a observando. Para onde ela foi, se a multidão, a realidade ou a História a engoliram, são perguntas que ficam ecoando.