Apesar de realizar filmes desde a década de 1990, o diretor mauritano Abderrahmane Sissako ficou mundialmente conhecido pelo seu filme Timbuktu (2014), com o qual concorreu uma estatueta de Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro. Para quem acompanha os cinemas africanos, sabe que o trânsito e questões como hospitalidade, reciprocidade e pertencimento são alguns dos temas presentes e explorados por diretoras e diretores relacionados ao continente. Atualmente esses temas são ainda mais urgentes, literalmente ultrapassando fronteiras.
O destaque no cinema de Sissako é a maneira como apresenta histórias singulares, ao mesmo tempo que com força política e complexidade cultural. Em Black Tea ele tenta orquestrar histórias de amor atravessadas pela profusão de culturas distintas, no caso as africanas e chinesas. No prólogo do filme adentramos a uma cerimônia de casamento coletivo – no clássico católico, com véu branco e padre – na Costa do Marfim. Aya (Nina Mélo), vestida de noiva, entediada ao lado do noivo, observa um casal interracial (uma mulher africana com um homem, mais velho, aparentemente asiático) e percebe a sua infelicidade. A cena beira a um tom de comédia de costumes apesar do drama posto sobre o casamento não ser um lugar de muita escolha para mulheres. Já no altar, Aya não aceita ser esposa e o filme vai mudando de cenários até a aparente protagonista, que anda por ruas africanas, com vestido de noiva, ressurja por vielas chinesas (apesar do filme ter sido rodado em Taiwan, por conta de restrições na China), com roupas comuns, conversando com pessoas na rua, falando um mandarim impecável.
A partir de então, Black Tea nos move por um ritmo muito conhecido pelo cinema de Wong Kar-Wai, por exemplo, apresentando personagens dialogando e criando laços entre si enquanto vivem o ritmo da periferia chinesa com todas as suas peculiaridades, inclusive a imigração. Um ponto positivo é que Aya não surge primeiramente como imigrante e mulher negra em um país estrangeiro. Mas sim como uma trabalhadora em uma loja de chás, essa arte milenar que atravessa não só países asiáticos, mas também muitos dos africanos. Essa primeira parte, de onde surge o apelido para a protagonista – de chá preto, como conhecemos no Brasil –, provavelmente é o que move o filme e o torna interessante. O roteiro, escrito pelo diretor com a roteirista Kessen Tall, constrói a relação de Aya com o dono da loja de chás Cai (Chang Han) como se fosse uma eterna encenação do preparo da bebida. Tudo importa nesse ritual, desde a temperatura da água até como se serve o chá e os tipos de louça Nesses momentos os personagens conversam e vamos conhecendo mais sobre Cai do que Aya.
Nessa construção de relação também há outra característica do cinema de Kar-Wai, os amores fora dos padrões aceitos socialmente. Porém, infelizmente, Black Tea acaba romantizando duas situações para dar uma forçada na relação entre Aya e Cai e tornar delicada (e exotizada) a situação de relacionamentos interraciais – primeiro, Aya “inveja” a relação aparentemente feliz da colega de casamento com um homem de outra cultura. Depois, descobrimos que Cai, casado, e antes morando em Cabo Verde, teve um relacionamento escondido com uma funcionária negra, o que nesse momento presente do filme se apresenta como uma padrão ou mesmo uma espécie de desvio de conduta, segundo a cultura chinesa.
Com isso, Black Tea sai do foco de Aya e Cai e vai se construindo como um sonho, apenas estético, perdendo força na narrativa por não conseguir manter as discussões culturais e a construção de espaços onde de fato pessoas convivem em um mundo migrante e imigrante. Há momentos muito bons como as conversas e danças num salão africano de cabeleireiros, onde Aya vai sempre; as conversas sobre os sabores do chá e como o ritual da bebida é uma espécie de terapia e relacionamento entre quem está dividindo o momento; e há também uma cena complexa e simbólica em que a família de Cai discute a imigração africana do bairro em que a loja está localizada e o filho dele, um jovem de 20 anos, fala como não consegue pactuar com as ideias puristas conservadoras. Além, claro, da beleza da fotografia, que se aproveita da luz indireta das ruas e dos ambientes iluminados com tons amarelados entre ouros.
Mesmo que Black Tea não consiga manter o ritmo da sua narrativa, o filme aponta para muitas questões prementes que não são elaboradas pelo cinema ocidental e branco. Trata de assuntos espinhosos como, por exemplo, as maneiras que os purismos culturais afetam homens e mulheres de maneiras muito diferentes, apontando a necessidade de se pensar esteticamente questões de raça, classe e gênero interseccionadas.