O folclore brasileiro geralmente é lembrado pelas crianças na fase de aprendizado na escola e na iniciação as contações de história, mas ele compete muito com outros contos poderosos e globais sobre princesas que evaporam o que é nosso. Muito disso, porque nenhuma produção cinematográfica ou televisiva acreditou no potencial da nossa cultura sem ser pela vertente do infantil como o Sítio do Picapau Amarelo. Lá fora, a série Grimm, que se baseia nos contos de dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, é um grande exemplo de como uma cultura pode ser o pano de fundo para várias tramas e ser bem sucedida nisso.
No Brasil existe muita resistência a produções brasileiras em geral, porque a qualidade já foi muito questionável, isso por vários fatores, principalmente o financeiro, já que o apoio a arte no nosso país fica muito aquém de vários outros. Mas ultimamente com a explosão dos serviços de streaming, mais séries e filmes nacionais estão ganhando um espaço inesperado e fazendo acontecer histórias que antes a gente só imaginava na gringa. Impossível não citar Desalma, da Globoplay. A série que trouxe um ar místico que não se via na tv com frequência conseguiu entregar uma cinematografia impecável e bons momentos, porém pecou no principal, de escolher uma trama focada no folclore ucraniano enquanto no Brasil temos uma riqueza de personagens esperando para serem explorados.
Por sorte, esses seres viram a luz do dia em Cidade Invisível da Netflix e a surpresa não poderia ter sido mais positiva. Carlos Saldanha, conhecido por dirigir as animações de Rio, soube usar da sua experiência em Hollywood ao criar uma série que se sustenta de lendas com traços de brasilidade únicos e possui uma história base com uma fórmula que não tem como dar errado. Sem enrolar muito em traumas e cenas vazias de lençóis, cafés coados ou reflexões na janela, que geralmente tomam conta do nosso cinema, não acrescentam em nada na trama e só servem para o filme ter minutos a mais, a série já vai direto ao ponto sem perder a estética.
Cidade Invisível conta a história de um submundo cheio de criaturas do nosso folclore como a Cuca, a sereia Iara, o Saci, Curupira, entre outros, que vivem escondidos entre os humanos. Durante uma festa junina, o policial ambiental Eric (Marco Pigossi) perde sua esposa Gabriela num incêndio na mata e ele resolve investigar o que a matou enquanto tenta cuidar de sua filha Luna. Nesse caminho ele tem a ajuda de sua parceira Márcia (Áurea Maranhão) que ao longo dos episódios desabrocha de uma simples sidekick para uma personagem mais completa, forte e muito carismática. O elenco também ganha muito com o Saci de Wesley Guimarães, que projeta uma releitura atual do que seria o personagem e consegue entregar os momentos mais cômicos e emocionantes da série.
O roteiro é uma das maiores forças da produção, que além de ser coeso e muito bem amarrado, emprega a forma falada acima da formalmente correta, tornando as cenas bem mais orgânicas, sem fazer com que tudo soe cafona como foi em 3%, por exemplo, e deixa o espectador totalmente à vontade, ajudando também na performance dos atores. E nesse ponto, Marco Pigossi mostra seu valor como um John Krasinski brasileiro e brilha durante todos os episódios. A trama tenta ser o menos complicada possível e investe muito bem em desenvolver na medida seus personagens, sem entrar em assuntos muito explicativos ou didáticos sobre folclore e ainda dá conta de tocar no assunto da preservação das nossas florestas de uma forma que não força a barra da militância a qualquer custo.
Com efeitos visuais que impressionam e ao som embriagante de Sangue Latino de Ney Matogrosso, Cidade Invisível encanta, envolve e apresenta uma série investigativa sobrenatural que a gente precisava ver.