Depois de quase duas décadas de produção de vídeos, a plataforma Youtube está começando a entregar profissionais que começaram ali e se mostram bastante criativos para dar uma balançada na cena audiovisual. Esse é o caso dos irmãos Danny e Michael Philippou e a recente produção da A24, Fale comigo, um dos longas mais esperados desde o Festival de Sundance, em janeiro de 2023.
O terror talvez seja um dos gêneros mais amados e odiados do cinema. As narrativas do estilo têm seus próprios clichês, porém mudam dependendo do contexto e da cultura. Afinal, o medo e o sentimento de horror podem ganhar as mais variadas formas dependendo de quem conta a história. Na última década o cinema australiano apresentou produções que marcaram época no cinema de gênero, como é o caso de Babadook (2014) e Relic (2020), realizados por mulheres, e que movem o terror entre o aparente sobrenatural e as construções que a mente é capaz de fazer em situações de ultrapassagem de limites.
Fale comigo não apenas faz coro com as produções conhecidas, ainda consegue adicionar algum tempero ao gênero, negociando com seus próprios clichês. O filme tem uma premissa básica: adolescentes querendo provar que o mundo não tem limites, lidando com possessões equivocadas e dialogando com espíritos que não estão para brincadeira. Depois de um prólogo brutal, o longa nos apresenta a adolescente Mia (Sophie Wilde), que sofre com um recente luto pela morte da mãe, justamente porque aconteceu em circunstâncias pouco nítidas. Mia tem sua melhor amiga Jade (Alexandra Jensen) e convive intimamente com a família dela, com o pré-adolescente Riley (Joe Bird) e a mãe Sue (Miranda Otto). Mia e Jade estão tentadas a encarar uma cena que se tornou viral na escola envolvendo vídeos com adolescentes possuídos, revirando olhos negros enormes e se contorcendo.
Mia, Jade e Riley vão a uma das sessões que envolve segurar uma mão de cerâmica (contam que é a mão decepada de uma vidente), dizer “fale comigo” e “pode entrar”. Os espíritos não apenas aparecem, encarnam, mas só por 90 segundos, tem que apagar a vela e acabar com tudo. Mia topa em ser uma das cobaias e, como espectadoras, começamos a ver o terror de frente, em um jogo de câmeras que já muda o ritmo do filme. A situação das pessoas mortas é perturbadora e é como se pudéssemos segurar aquela mão junto. A performance de Sophia Wilde nessas cenas dá o tom de como ela carrega a protagonista no corpo, lembrando a Lupita Nyong’o em Corra, de Jordan Peele.
As cenas de possessão, brutais no começo, vão ganhando contornos de graça em cenas divertidas com os jovens filmando as performances por horas a fio. Justamente quando ninguém mais está levando a sério as sessões, Riley convence a irmã e a amiga mais velha a ser o próximo, então, quem aparece? Um espírito que diz ser a mãe de Mia. Aí que a coisa desanda, ela quer falar com a mãe, deixa ultrapassar os 90 segundos e o espírito toma conta e começa a violentar o corpo de Riley. O que se segue depois é um interessante escape da dupla de diretores para não cair no clichê, apostando em abordagens do cinema independente. A partir disso Fale comigo é sobre Mia lidando com os espíritos (em todos os graus de sentido) do luto e da adolescência.
O trunfo dos gêmeos Philippou, assim como dos roteiristas Bill Hinzman e Daley Pearson, é usar o básico do gênero a seu favor até entender quando deve mudar o tom do filme. Fale comigo consegue assustar o suficiente enquanto dá conta de colocar em cena discussões sobre depressão e luto na adolescência. Tudo isso é feito com sotaque, já sabemos que não estamos nos Estados Unidos e ninguém ficará preso em um porão. Também, o filme traz diversidade de gênero e raça de maneira bastante orgânica, como deve ser. Danny e Michael ressaltam, em entrevistas, a importância de que o filme parecesse australiano, apesar de suas influências.
Os diretores são conhecidos pelo canal RackaRacka, no YouTube, que mistura comédia, terror e ação. Bom mesmo é assistir Fale comigo sem ter visto o trabalho deles, pois uma das características do longa é como eles conseguem manter o ritmo da narrativa de uma maneira divertida e brutal ao mesmo tempo. Com certeza o filme faz jus de entrar na lista da elogiada produtora estadunidense A24, justamente porque aposta em mostrar que o terror é um dos gêneros que, ao longo da história do cinema e até agora, consegue dar conta de temas tão complexos, como política e doenças mentais, e ainda entreter e fazer o corpo de quem assiste rir e suar frio ao mesmo tempo.