First Cow – A Primeira Vaca da América

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Em "First Cow" não é a história dos vencedores que conta o clássico sonho americano, mas sim daqueles que quase passaram anônimos por ela

No senso comum do que seja uma narrativa ideal, há sempre um herói que vive uma sucessão de eventos incríveis e que em algum momento chega no lugar que lhe cabe e assim recebe uma espécie de premiação. Trilhar caminhos árduos é comumente relacionado com construções históricas, contadas por pessoas vencedoras, muitas vezes sem levar em conta as muitas anônimas que não tiveram suas narrativas consideradas por serem desinteressantes. A realizadora estadunidense Kelly Reichardt é conhecida por fazer um cinema mais minimalista e com narrativas bastante complexas de personagens que sempre são pessoas comuns, nada edificadoras mas muito marcantes e cheias de nuances. Todas as pessoas que circulam pelos filmes da diretora são o tipo de personagem não explorado no cinema narrativo comercial.

First Cow, filme mais recente de Reichardt, tem uma introdução no tempo presente em que uma mulher, caminhando com seu cachorro, encontra duas ossadas humanas enterradas perto de um matagal. Apesar desse prelúdio não ser retomado no filme, ele serve como uma ponte para esse mesmo lugar – um ponto do estado de Oregon, nos Estados Unidos – pois traz à tona o passado daquele ambiente, uma história por trás daqueles artefatos arqueológicos. Em seguida, o lugar é tomado por uma mata mais densa e, pelas roupas do grupo de homens que aparece, entende-se que é meados do século XIX. Cookie Figowitz (John Magaro) é o cozinheiro de um grupo que trabalha com armadilhas, seguindo para o oeste daquele país. Ele é um homem que se apresenta simples, calmo e maltratado pelos outros membros do grupo. Ao encontrar e ajudar, perdido e com fome, o imigrante chinês King-Lu (Orion Lee) o cozinheiro passa por uma série de situações que o convencem a ter outros planos para a sua vida.

Juntos, a dupla vai tentar se beneficiar da chegada da primeira vaca (vinda da Europa) na região, propriedade de um funcionário do reino. Cookie sabe cozinhar muito bem e King é visionário, uma espécie de protótipo de empreendedor. Porém, essa lógica de ter um plano – e consequentemente se dar bem – é atravessada por outras questões pouco ou quase nada heroicas. Aqui os personagens são pouco generificados, no sentido que não representam o senso comum do gênero masculino, ainda mais se tratando de uma ambientação dominada por homens. Cookie e King são dois homens que têm uma relação de amizade incomum, que não se encaixa na clássica ideia de parceria, assim como não é uma relação homoafetiva; eles simplesmente confiam um no outro e funcionam na narrativa justamente por oferecerem outras representações de homens na época.

O filme tem um diálogo interessante com O Atalho (2010), da mesma diretora, em que uma família também atravessa um ambiente hostil em busca das promessas de desenvolvimento no oeste dos Estados Unidos. Trabalhando com situações simplórias e minuciosas, Kelly Reichardt conta histórias daqueles que não simbolizam ideias de sucesso do sonho americano e faz isso subvertendo lógicas de gêneros cinematográficos como o western, por exemplo. Mesmo que esses personagens sejam colocados em situações que geram expectativa em quem assiste, nunca há margem para a aventura ou alguma narrativa edificadora. É como se sempre estivessem em busca de algo que nunca vai acontecer, ou pelo menos não da forma que esperavam e, de forma incrível, quem assiste se vê simpatizado por eles.


Mesmo sendo inspirado em um livro – Half-Life (2004), de Jonathan Raymond – o filme tem uma assinatura bem própria de Reichardt. First Cow segue o estilo já conhecido da diretora, é minimalista em sua concepção, som diegético, simplicidade na direção de atores e uma direção de arte alinhada com o realismo proposto. Porém, é um longa complexo em sua proposta, e apesar do espaço de ação das personagens ser pequeno, todo o ambiente é organizado para representar uma situação real de meados do século XIX, em uma região precária. O mais interessante do filme é apostar nas narrativas daquelas pessoas que ficaram pelo caminho da História, mostrando como os sistemas econômicos se forjaram deixando muitas ossadas para trás.

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