Livros Restantes

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"Livros Restantes": Os capítulos que ainda faltam escrever

Livros Restantes é um daqueles filmes que começam pequenos, quase tímidos, mas que aos poucos revelam um universo emocional vasto. A diretora Marcia Paraiso (Lua em Sagitário) acompanha a protagonista Ana Catarina — vivida com delicadeza por Denise Fraga — em um momento de virada radical: aos 50+, prestes a deixar a comunidade pesqueira onde viveu toda a vida para recomeçar em Portugal. O ponto de partida é simples, quase prosaico: desapegar de cinco livros que sobreviveram ao processo de mudança. Mas a simplicidade é apenas aparente, porque cada volume carrega não apenas uma dedicatória, mas um pedaço de quem Ana foi.

Ao reencontrar as pessoas que lhe deram esses livros, Ana revisita sentimentos, cicatrizes e versões antigas de si mesma. E é justamente nesse movimento — feito de lembranças que doem e outras que aquecem — que o filme encontra sua força. Paraiso constrói esses reencontros com uma sensibilidade que evita o melodrama, apostando em gestos, silêncios e olhares que dizem mais que qualquer discurso. Há uma autenticidade palpável nas conversas, nos constrangimentos, no afeto que persiste e no que ficou pelo caminho.

O grande mérito de Livros Restantes é compreender que a maturidade não chega com respostas prontas. O filme trata da invisibilidade feminina, mas também do desejo, da possibilidade de recomeçar e das rachaduras que insistimos em esconder. Em vez de transformar Ana em símbolo ou tese, a obra a enxerga como pessoa: contraditória, perdida, corajosa e assustada. Esse equilíbrio entre empatia e honestidade faz com que a jornada da protagonista ecoe para além da experiência individual dela.

Visualmente, o longa abraça o tempo e os ambientes com um carinho especial. A Barra da Lagoa, com sua rotina de pesca e vento salgado, contrasta com a expectativa de uma nova vida em Portugal, e ambos os espaços refletem o estado interno da personagem. A fotografia, liderada por uma equipe majoritariamente feminina, reforça essa intimidade: luz natural, cores suaves e um cuidado evidente com cada espaço que moldou a vida de Ana.

Nem tudo, porém, funciona plenamente. Em alguns momentos, o filme estende demais certas situações, tornando o ritmo irregular. Há um excesso de explicações ou metáforas ditas em voz alta, quando o próprio gesto já seria suficiente. Ainda assim, mesmo quando tropeça, Livros Restantes nunca perde de vista seu propósito emocional — e isso sustenta o longa.

É impossível ignorar o simbolismo dos livros como fios que conectam passado e futuro. Paraiso utiliza essa metáfora de maneira sensível, mostrando que objetos têm o poder de guardar o que a memória às vezes insiste em apagar. Cada entrega é também uma devolução de algo que não pertence mais a Ana, e ao mesmo tempo um resgate daquilo que ela precisa levar adiante — mesmo que só dentro de si.

No conjunto, Livros Restantes é um filme caloroso, honesto e por vezes profundamente bonito. Com delicadezas suficientes para tocar e falhas que não comprometem a experiência, a obra forma um retrato frágil e verdadeiro de uma mulher em reconstrução. Um capítulo importante — e ainda aberto — da vida de Ana Catarina, e um lembrete de que recomeçar também exige escolher quais histórias estamos prontos para deixar para trás.

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