Amas de leite, cuidadoras, “tatas”, “tias” e babás. Quantas nomeações atravessam questões de imigração, raça, classe e gênero quando famílias brancas precisam do trabalho doméstico, e de cuidado, de outras mulheres em situações de subalternidade?
Meu Verão com Glória, da diretora francesa Marie Amachoukeli, prioriza o atravessamento de olhares exclusivos entre Glória (Ilça Moreno Zego), uma imigrante de Cabo Verde na França, e a pequena Cléo (Louise Mauroy-Panzani), de seis anos, órfã de mãe e criada por essa mulher que acaba de perder a sua e precisa voltar ao país de origem. O que a diretora constrói – com a direção e o roteiro escrito com Pauline Guéna – é uma espécie de história de transição da infância (conhecidas pelo termo coming of age); porém, não apenas para Cléo, mas também para Glória, que precisa retornar, dar conta dos filhos que deixou lá e estão passando pela mesma travessia. Fernanda (Abnara Gomes Varela), a filha mais velha, está grávida, e César (Fredy Gomes Tavares) está no auge da rebeldia da pré-adolescência, tentando entender quem é aquela mulher que voltou a ocupar a posição de mãe no lugar da avó.
Em uma espécie de prólogo, Meu Verão com Glória inicia com a cumplicidade cotidiana entre Glória e Cléo, uma criança nitidamente amadurecida por conta do luto precoce. Não sabemos muito além de que a mãe morreu em decorrência de um câncer e o pai (um simpático Arnaud Rebotini) trabalha fora. Antes de voltar para Cabo Verde, Glória pede ao pai da menina que a mande para a ilha, a fim de terem um último verão juntas, um período importante para que o luto dessa separação seja vivido com a certeza de laços criados apesar da distância. Chegando na terra de Glória, finalmente vemos Cléo saindo do conforto de ter a mulher só para ela. Além do clima, da língua e da cultura, a pequena vai lidar com as estruturas familiares que ali existem, de pessoas que cresceram com a ausência da mãe em nome de uma vida melhor trabalhando em outro país. Apesar das dores desse tipo de amadurecimento, Cléo é atenta, disposta e acompanhamos isso tudo de perto.
Por isso mesmo, um dos acertos é a direção de crianças – colaborando na associação com o ótimo Pequena Mamãe, de Céline Sciamma –, em que podemos ver as personagens como seres completos, com várias dimensões. Cléo e César, por exemplo, ocupam seus lugares de raça, classe e gênero próprios, com uma crítica forte presente, mas sem deixar de observar o que conecta esses dois: Glória e a infância. Como se organizasse Meu Verão com Glória em capítulos, o filme é montado com passagens de animação – uma espécie de aquarela – que ajudam a fabular sobre momentos de passagem desse amadurecimento de Cléo.
Em uma das cenas mais bonitas do filme, quando pergunta sobre as fotos de Glória com tantas pessoas, Cléo se dá conta que todas as suas memórias (as suas próprias imagens) até ali são com aquela mulher. Meu Verão com Glória atravessa essa primeira pessoa do título, Cléo, que possui o verão com Glória, que é parte importante dessa sua, ainda pequena, vida e traz as dores do amor e dos laços que não são eternos apesar de fortes. Marie Amachoukeli consegue colocar em tela uma crítica sobre cuidado e imigração, sem deixar de lado os sentimentos verdadeiros que conectam as pessoas e nos formam.