filme visto durante a 9ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba
Assim como no livro Diante da dor dos Outros, de Susan Sontag, o longa Na Cabine de Exibição, de Ra’anan Alexandrowicz, começa fazendo menção ao famoso argumento pacifista de Virginia Woolf em Três Guinéus, ensaio publicado em 1938. Questionada, hipoteticamente, por um advogado sobre o que ela e ele poderiam fazer para acabar com a guerra, a escritora inglesa começa a longa resposta afirmando que ambos não poderiam tomar uma decisão conjunta porque estavam em posições diferentes. Woolf trata nesse ensaio das oposições de visões belicistas entre homens e mulheres e faz isso partindo da exposição das pessoas diante de imagens de guerra; homens gostam e sentem desejo pela guerra, mulheres não. Décadas depois Susan Sontag, como uma grande exploradora das questões éticas na produção e recepção de imagens, vai além dos argumentos de Woolf sobre a identificação ou repulsa diante da imagem, colocando agência ideológica na pessoa que vê e assiste. Ninguém passaria impune às imagens pois raramente se abre mão do sistema de crenças particulares ou mesmo se aceita que as imagens em uma tela também fazem parte de uma retórica.
No filme de Alexandrowicz a premissa é aparentemente simples: nos Estados Unidos o cineasta israelense, já com uma pesquisa em andamento sobre recepção de imagens, faz um chamado em uma universidade por pessoas interessadas nos conflitos entre Israel e Palestina. A idéia é que assistam, dentro de uma cabine, vídeos divulgados por imprensa e mídias alternativas sobre invasões e situações cotidianas nos lugares ocupados pelo exército israelense e que comentem sobre o que estão vendo, assim como sua relação com a imagem. Entre essas pessoas está Mia, filha de israelenses e que se diz pró-Israel. O filme é todo rodado dentro dessa sala onde fica a cabine com câmeras em várias posições. Vê-se Mia de frente, como em uma câmera de computador; ela de lado, vista de fora da porta da cabine e também o próprio diretor assistindo as cenas e os comentários dela. O processo todo é sobre prestar atenção nas reações da moça, uma tarefa nada fácil para a pessoa espectadora, pois além de termos acesso a alguns trechos dos vídeos que ela está vendo, é árdua a experiência de se perceber como alguém que também tem seu próprio sistema ideológico sendo mediado por essas imagens que o diretor decide nos mostrar de Mia, assim como a própria performance dela diante do fato de estar sendo filmada.
Susan Sontag diz que “Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deturpadas por suas legendas.”. Apesar de ela estar falando de imagens estáticas de guerra, com o cinema não é diferente. Desde campo e extracampo da cena até a subjetividade de quem está diante e na tela – seja ator ou protagonista de um documentário –, são as identidades de mediação que prevalecem, de quem expõe e de quem é exposto. Em Na Cabine de Exibição é Mia que está diante de nós sendo bastante honesta sobre seu olhar sobre o vídeo de invasão militar, expondo crianças no meio da noite. Mesmo que ela ache horrível o fato do contraste em cena de crianças dormindo e militares fardados e armados as acordando, também acredita que existe uma motivação para eles estarem nessa casa fazendo isso. Várias vezes a protagonista comenta sobre ter receio de perder a crença, um fator decisivo para a forma como ela encara essas imagens. Quem assiste percebe que Mia não é diferente de qualquer pessoa certa de suas convicções, mesmo que se discorde dela. Ela usa o seu direito de vacilar nas análises das cenas, de voltar atrás e também de defender opiniões.
Mesmo com a exposição direta de Mia – única espectadora retratada no filme – ela não passa a ideia de representar uma noção de povo israelense diante da guerra e está mais para uma pessoa que, vivendo nos Estados Unidos, é mediada por uma série de imagens que chegam até ela, não só pela família diretamente afetada, mas também pelas narrativas de guerra bastante costumeiras no país. Também funciona como um estudo de caso, pois há a questão dos vídeos escolhidos pelo próprio diretor, sendo que boa parte das imagens que vemos trata-se de crianças e de mulheres sendo atacadas ou tendo seus espaços apedrejados. Será que Ra’anan Alexandrowicz também não queria saber se a exposição diante da imagem de guerra depende de questões de gênero? Uma mulher se sentiria mais afetada pela imagem de outras mulheres e crianças sendo atacadas?
Várias questões afetam (de afeto e afetamento) as pessoas espectadoras em Na Cabine de Exibição, pois coloca a crítica e a banalidade de apenas assistir em contraste, tensiona os lugares de ver e ser visto como situações munidas de agência. Não é fácil aceitar que as imagens nem sempre estão disponíveis para entretenimento, ainda mais em um tempo em que as relações pessoais também são mediadas pela tela. Porém, pensar com os olhos de quem se assiste cinema é uma questão de entender até onde funciona representação, empatia e olhar crítico diante da tela. Em uma época de verdades e mentiras ficcionalizadas e manipuladas, o longa de Ra’anan Alexandrowicz coloca quem assiste no difícil, e urgente, lugar de lidar com os diálogos fora das bolhas pessoais e se olhar diante de um espelho.