Os cenários de uma peça de teatro sendo mostrados, um a um, com uma luz que incide e logo apaga, denunciam o tom fictício do filme que se inicia. Esse é o prólogo de O Apartamento, do diretor iraniano Asghar Farhadi, que entre cenários e representações da peça A Morte do Caixeiro Viajante, do americano Arthur Miller, trata da inconsistência da realidade e as rupturas capazes de abalar estruturas, poucos possíveis de reestruturação.
O casal Rama (Taraneh Alidoosti) e Amad (Shahab Hosseini) fazem parte de uma espécie de aristocracia cultural de Teerã, a capital do Irã. Ele é professor de literatura, um homem que se apresenta bastante aberto em relação aos padrões e também ao diálogo com os alunos. Ela, apesar de não trabalhar, atua com o marido em uma companhia semi-profissional de teatro. Enquanto se preparam para começar uma temporada apresentando A Morte do Caixeiro Viajante, veem-se em uma encruzilhada pessoal pois seu prédio corre o risco de cair por conta de uma construção que condenou os apartamentos, agora com rachaduras enormes e impossível de se habitar. Ao mostrarem ansiedade em resolver a situação, o colega de teatro Babak os oferece um apartamento e então se inicia uma trajetória, quase que uma espiral decadente, do casal em não apenas se adaptar ao novo espaço, mas também em lidar com o que ficou da antiga moradora do lugar.
Há uma incerteza sobre o paradeiro dessa inquilina e seu comportamento. Com um cômodo do apartamento entulhado de pertences da mulher, o casal tem que lidar apenas com os fatos expostos pelos outros e o pouco que ficou. Os vizinhos dizem que ela “recebia muitas visitas de homens”, Babak diz que ela era difícil e em determinado momento a ausência dessa personagem se torna violenta quando um homem, que costumava visitá-la, aparece. Nada mais pode ser como antes, principalmente para Amad e sua noção de cuidado em relação à esposa, dentro dessa cultura em que um homem deve preservar a figura de sua companheira.
Logo no começo da primeira parte do filme, enquanto Rama e Amad juntam suas coisas e saem do prédio, os vidros do quarto racham em um movimento brusco, porém devagar, fazendo um caminho. A relação do casal, durante essa saída forçada do lar, poderia ser metaforizada por essa cena. Como se a ficção – no caso, a dramaturgia – tomasse conta, talvez pelos exaustivos ensaios e caracterizações, e os contaminasse pelos questionamentos e sentimentos da peça em que atuam. Em A Morte do Caixeiro Viajante – uma das peças mais encenadas na história e vencedora do Pulitzer, em 1949 – o protagonista Willy Loman vive entre a realidade e a fantasia para conseguir encarar o amargo sonho americano. Em O Apartamento, Farhadi consegue trabalhar toda a essência da crítica da peça dentro do proposto pelo filme. A arte sempre operando sobre a realidade, independente da cultura, pois é atemporal e não pertencente a um único lugar.
A estrutura do roteiro segura o espectador, ansioso pelos acontecimentos. Não que O Apartamento não tenha seus momentos de queda de ritmo, pois diferente de um cinema mais ocidental, é pouco acostumado à velocidades e ação pela simples ação. Em nenhum momento o filme precisa de cenas chocantes ou um clímax dramático, mas, de certa forma, é isso que a câmera colada nos personagens – que nunca nos dá o benefício de ver a cena antes – faz com o espectador, que literalmente, espera um desenvolvimento que amenize a tensão da cena. E é nesse ponto que Farhadi acerta em cheio no roteiro do filme, fazendo com que permaneçamos observando e aguardando. A última meia hora é particularmente tensa o suficiente para que, literalmente, tudo pareça estar prestes a ruir, desde o prédio condenado como as emoções e relações entre personagens.
As questões sociais e culturais sempre rondam os ambientes, sem fazerem parte da trama de fato. Ao passo que encenam uma peça americana, conhecida por criticar o american way of life, diante de um cenário de bowlings e casinos, as mulheres ainda usam lenços que cobrem seus cabelos, como se fosse um lembrete que apesar da contemporaneidade dos cenários, ainda estamos no Oriente Médio. As rupturas nos filmes de Asghar Farhadi são de dentro para fora, como acontece com os personagens do premiado A Separação, Oscar de filme estrangeiro em 2012. Claro, esse mérito se deve a ótima atuação dos protagonistas, com destaque para Taraneh Alidoosti que passa da calmaria para um tempestuoso e vingativo marido, mesmo que não saibamos se age em defesa da mulher ou da própria sanidade.
O diretor segue uma tradição – de uma forma muito pontual e autêntica – de grandes cineastas como Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf. Principalmente com o primeiro, que em suas últimas produções colocava em pauta a realidade e a ficção de forma incisiva. Em certo momento, há um diálogo durante uma aula e Amad é questionado por um aluno sobre um livro de Gholam-Hossein Sa’edi (escritor iraniano), onde um homem se transforma em uma vaca. O aluno pergunta como isso acontece, o professor responde: aos poucos. Durante as duas horas de O Apartamento somos levados a se questionar como as coisas chegam naquela situação e Amad sempre nos responde da mesma forma.
Mesmo que O Apartamento não tenha o vigor de outros filmes do diretor, é um filme muito bem executado e que planta muitas interrogações, deixando vestígios no espectador. É como se devêssemos ser confrontados durante a passividade de assistir um filme ou uma peça. Sabemos muito bem que podemos nos abalar profundamente diante de um e de outro e esse é o poder da arte, tornar desconfortáveis as nossas zonas de conforto.