Assistindo ao documentário In Search Of Darkness (2019) – que trata do cinema de horror por uma perspectiva estadunidense na década de 1980 – é certo que os filmes mais icônicos do período não eram nada inocentes em construções de críticas políticas e sociais. É sempre assustador – ainda mais em tempos de pandemia e estados falidos – quando pessoas espectadoras dizem que o cinema de terror/horror/fantasia é pura visualidade. Pois não é, logo nas primeiras telas de O Cemitério das Almas Perdidas, novo longa do capixaba Rodrigo Aragão, há uma dedicatória ao diretor José Mojica Marins, uma das principais referências – tanto de estética quanto de resistência – no cinema brasileiro, falecido no início deste ano. Desde Mojica, que produziu durante a Ditadura Militar, até os últimos anos com um ressurgimento do gênero, levando nomes como Gabriela Amaral Almeida, Juliana Rojas e Dennison Ramalho, o cinema de gênero tem mostrado vitalidade e boas sacadas em mostrar que horror mesmo é a situação em que se vive no Brasil.
Seguindo com alguns elementos que já marcam a filmografia de Rodrigo Aragão, O Cemitério das Almas Perdidas também faz uso do cinema de gênero para pensar críticas visuais, com muito sangue, zumbis, almas penadas e gente que insiste em fazer pactos envolvendo o livro de São Cipriano, conhecido da cultura popular brasileira. Dessa vez a história envolve o colonialismo português e os homens da igreja católica que, tentando sobreviver a todo tipo de tragédia em alto-mar, fazem um pacto e são amaldiçoados eternamente em terras brasileiras. Claro que a maldição se estende sempre que os homens jesuítas se encontram em situação de apuro, como a total ignorância em relação aos povos indígenas com os quais se deparam logo que chegam, ou mais pra frente, com escravizados e seus descendentes. Como bem diz o personagem Cipriano (Renato Chocair), eles se alimentam de pessoas marginalizadas, os outros em relação ao clero português.
O Cemitério das Almas Perdidas é uma das direções de arte do terror mais bem executadas dos últimos anos, nos vídeos de making off e de divulgação se percebe que Rodrigo Aragão pode trazer visualidades chocantes com um pouco mais de dinheiro do que as produções anteriores. Não falta sangue, máscaras, rostos de zumbis e trabalho de maquiagem em geral, situações que animam já que a computação gráfica tem dominado outras produções. Porém, na situação de querer ter um certo cuidado em propor representações de povos indígenas e escravizados em tela, o filme acaba se perdendo em questões de roteiro, exagero no número de personagens e pontas soltas em geral. Ayra (Allana Lopes) e Jorge (Diego Garcias), acabam caindo na velha história de amor, sendo que ambos sustentam as representações propostas quase sozinhos e sem muito cuidado, muitas vezes quase pendendo para uma caricaturização. Por outro lado, o fanatismo religioso, a hipocrisia dos colonizadores e os alívios cômicos funcionam bem.
Abertura da décima edição do Cinefantasy, um dos principais festivais do mundo dedicado ao cinema de fantasia, O Cemitério das Almas Perdidas também dialoga com outra produção brasileira presente no festival, na competitiva de longas: Cabrito, de Luciano de Azevedo. O filme de Azevedo, assim como de Aragão, mostra o terror do fanatismo religioso e a hipocrisia daqueles que defendem algumas vidas pisando no sangue de outras, tudo isso ao som do hino nacional e programas de rádio AM transmitindo discursos militares. O cinema de fantasia no Brasil nunca foi tão real.