O Segredo das Águas

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A vida e a morte são as duas extremidades da fita de Möbius que conduz “O Segredo das Águas” (Futatsume no Mado, 2014), de Naomi Kawase. O mais recente longa da diretora japonesa usa como plano de fundo uma simplória, e revestida de tradições, ilha japonesa para tratar da vida como um ciclo e as formas que se dá o lugar do ser humano na natureza.
Kaito e Kyoko são dois adolescentes que vivem na ilha de Amami, no Japão. Na noite em que um ritual folclórico de lua cheia ocorre na praia, Kaito encontra o corpo de um homem, com as costas tatuadas, cobertas por uma enorme carpa simbólica. A situação mexe com o cotidiano do adolescente, desencadeando em uma série de questionamentos e associações com a sua vida, principalmente se tratando da fragmentação do seu núcleo familiar com a separação dos jovens pais e o seu medo em relação ao mar. Já Kyoko lida com uma fragmentação familiar diferente, sua mãe – uma jovem xamã da ilha – está morrendo. Os dois adolescentes, juntos mas cada um em uma trajetória de aceitação diferente, descobrem sobre o desapego, a vida, a morte e o amor.
O primeiro jogo de imagens proposto em “O Segredo das Águas” é definidor, o mar revolto de uma manhã numa praia tranquila, em seguida o som e imagem das águas são trocados por um ancião que mata uma cabra, um ato comum para um animal carnívoro, a morte como parte de um ciclo, a morte de algo para manter outro ser vivendo. Mais tarde o jovem Kaito, ao presenciar a morte de outra cabra pergunta “Quanto tempo isso vai levar?”. Saber que a morte é uma certeza, o incômodo dela não se torna menor e lidar com isso não é sempre uma opção. A morte de um sentimento, de um corpo e de um dia. Naomi Kawase dá poucas respostas em sua filmagem que beira entre o documentário e o poético, mas deixa expostos os pequenos símbolos, as mínimas referências observadas por um olhar mais atento.
Outro ponto interessante em “O Segredo das Águas” é como os rituais moldados por séculos de tradição são tratados de forma sensível. Há uma cumplicidade entre o olhar do espectador passivo e os cânticos entoando os últimos momentos de alguém. Ao invés de fugir da cultura japonesa que obedece a tantos tradicionalismos e crenças folclóricas, Naomi apresenta uma sensibilidade e respeito, usa a linguagem local e deixa a cena fluir. Mesmo quando filma em Tóquio, no meio da multidão de carros, prédios e pessoas, a simbologia e o questionamento de existência permanecem firmes.
O cinema de Kawase contradiz a ideia téorica de que uma obra de ficção autoral deve ser despida de influências vindas das experiências reais do autores. Lendo um pouco sobre a delicada história da diretora japonesa é como se pudéssemos vê-la lidando com a simbologia do mar ou perseguida por pesadelos perturbadores na pele dos jovens protagonistas. Há elementos pessoais em quase todas as cenas do longa. Abandono, obsessões e desapego são norteadores da câmera na mão e que por momentos se perde no olhar dos personagens Kyoko e Kaito.
Acompanhar “O Segredo das Águas” exige atenção e vontade de ser um espectador atento, como os personagens mais velhos do longa, ver e ouvir além. Em tempos de pressa, barulho e pouca atenção, o que você está disposto a enxergar?

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