Tem dias em que as coisas não estão funcionando bem desde a hora em que você botou o pé pra fora da cama, e tudo que você deseja é voltar pro seu refúgio e fingir que nada aconteceu. Afinal, amanhã é outro dia, novinho em folha, prontinho pra você fazer diferente e arrasar. Mas isso nem sempre é possÃvel, pois tem vezes que certos perÃodos inteiros da vida parecem um pesadelo sem fim, como a adolescência. E como cereja no bolo, Ênio (Sandro Aliprandini), beirando a vida adulta com quase nada de empolgação, ainda tem que lidar com outras situações complicadas em Ponto Zero, primeiro longa de José Pedro Goulart.
A vida de Ênio é pra lá de complicada (ou será que ele é que complica a coisa toda?): além de estar lidando com mudanças em seu corpo, ter problemas de socialização (o moleque passa a maior parte dos 94 minutos de filme calado), ele ainda tem que cuidar da mãe, que está tendo problemas com o pai, que prefere passar a maior parte do tempo fora de casa (e parece não dar a mÃnima para a famÃlia ou, como ele afirma, acha que a única responsabilidade é prover seu sustento). E cuidar da mãe inclui ter que assumir o lugar do pai em situações que o adolescente não parece preparado para enfrentar, como ter que abraçar a mãe quando ela está chorando, escutar suas reclamações à mesa do jantar, ou ser acordado no meio da noite para ir à cama da mãe, fazer companhia na ausência do pai. E como se já não bastasse tudo isso, em uma noite chuvosa, Ênio pega o carro do pai para se encontrar com uma prostituta que ele descobriu de um cartão que estava nas coisas do pai. Mas no meio do caminho ele sofre um acidente, e sua vida nunca mais será a mesma.
Além do tema ser atemporal e muito pertinente (conflitos familiares e dificuldades pra se crescer estão sempre presentes nos filmes, o megalançamento da semana, Alice Através do Espelho, taà pra comprovar isso!), a história foi apresentada de uma maneira bastante interessante. No começo do filme, o adolescente nos mostra como está se sentindo – sufocado, sem poder respirar e sem poder contar com ninguém para ajudá-lo. Ele está por conta própria em um mundo maluco e cheio de problemas. E cada um tem seus problemas, e não está muito interessado em olhar pro lado e ver o que o outro está sentindo: a mãe quer mais atenção do pai; o pai quer liberdade; um homem na calçada quer que o bêbado que atropelou o motoqueiro se ferre; o motorista do ônibus quer que a chuva nunca mais pare, lavando todos os pecados das ruas. E Ênio só quer que o mundo pare pra ele poder descer. E sentimos toda essa angustia do adolescente, apesar de seu silêncio. E o filme vai amontoando esse sentimento, até explodir, ao final.
Além da história e do roteiro, outro ponto alto é a fotografia. A paleta de cores do filme nunca foge do azul e do preto, em tons apagados, fazendo com que o clima fique ainda mais pesado. Parece que Ênio nunca vai sair desse pesadelo. E falando nisso, muitas partes do filme não são preto no branco: você não sabe ao certo se Ênio está sonhando ou vivendo a vida real. Na parte final do filme, em que Ênio sofre um acidente com o carro do pai, realidade e sonho se cruzam o tempo todo, com cenas teatrais (como quando ele está na calçada, no chão, com a chuva incessantemente caindo, e a câmera está filmando de cima, e a luz delimita uma área muito semelhante à que vemos no teatro – se bem que a vida de Ênio está mesmo em um palco no momento, e nós estamos analisando e observando, e julgando, tudo que ele faz) e até absurdas (além da trilha sonora) que me lembrou muito Lynch. Todo diretor é manipulador dos nossos sentimentos, mas Goulart brincou com os do Ênio (e com os meus) até os minutos finais do filme, quando conseguimos respirar novamente.
Nota:
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Ponto Zero
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