pois agora eu virei mulher/me operei e virei mulher/não precisa me aceitar/não precisa nem me olhar/mas agora eu sou mulher. Esses são os versos finais do poema mulher depois da gaúcha Angélica Freitas, a eu-lírica é um tanto irônica, apesar do drama que ela começa a expor desde o primeiro verso: é uma carta endereçada aos pais sobre uma viagem para a Tailândia, de onde ela decide contar que agora é mulher apesar das negações da família a respeito de seu corpo. Essa voz do poema dialoga de forma muito tênue com a protagonista Marina de Uma Mulher Fantástica, do chileno Sebastián Lelio. Assim como essa voz, Marina tem que se endereçar a todos que encontra explicando que é uma mulher, se sente como uma e, apesar de códigos de aparência, tem que provar que a ela cabe um nome que não seja o masculino marcado no documento oficial.
Uma Mulher Fantástica começa com uma introdução mostrando Orlando (Francisco Reyes Morandé), um homem próximo dos sessenta anos se preparando para encontrar a namorada – que está de aniversário – no final do expediente. Orlando é um homem calmo e logo descobrimos que sua companheira Marina, apesar de bem mais jovem, também é calma e apaixonada. Após uma noite de comemorações, ambos voltam para casa embriagados e no meio da madrugada Orlando sofre um aneurisma. Uma situação inesperada que desencadeia uma espiral de acontecimentos que nos revelam mais sobre Marina e, principalmente, sobre uma sociedade machista diante de uma mulher fora do padrão.
Marina Vidal (Daniela Vega) é uma mulher trans e isso é apenas uma informação de sinopse, a subjetivação vivida pela protagonista de Uma Mulher Fantástica acontece de forma peculiar aos costumeiros processos de transição. Aqui, a condição de mulher e transsexual de Marina acontece apontando para as instituições falidas da família, da igreja e nas formas que órgãos como a polícia são formados para duvidar de uma mulher diante de qualquer situação. Pouco nos interessa o sexo biológico de Marina diante da tela, apenas não conseguimos encarar a forma em que as pessoas e o sistema tentam domar e definir o seu corpo.
O que é uma mulher, o que é um corpo feminino? Uma vagina define uma mulher? Não quero adentrar aqui ou me estender em teorias contrárias entre si dentro do feminismo. Em Uma Mulher Fantástica constata-se o fato de alguém sofrendo violência de gênero por ser uma mulher fora de um padrão reconhecido. Chamada desde “quimera” pela ex-mulher do companheiro, de “viado” e “aberração” por outros homens, Marina tem seu corpo violentado, domado e exposto, como qualquer outra mulher. E mesmo assim ela flana pela capital chilena, como um corpo aberrante circulando e refletindo, mostrado de várias formas pela câmera que a olha de inúmeras perspectivas, mostrando sensibilidade para além do não reconhecimento.
A personagem não coloca polêmicas em cena como a ideia de que mulheres trans apenas reforçam os estereótipos de feminilidade. Aqui as roupas do figurino são simples, assim como cabelo e maquiagens. Ela é uma garçonete e cantora, uma mulher comum, uma mulher trans que tenta fugir da marginalização do corpo-quimera acusado verbalmente e pelos olhares. Uma Mulher Fantástica aponta o dedo para o machismo estrutural que não perdoa corpos pouco ou nada domados, que não deixa escapar o que não se encaixa. O filme consegue dar conta de toda essa forma política usando a estética a seu favor. Podemos ora ter um olhar de Marina diante do mundo cruel e seus devaneios, ora um olhar de espectador, que observa a protagonista se relacionar com a cidade, já que é quase impossível com os humanos. Destaque para a fotografia, figurino e direção de arte do longa, dando vida aos embates usando a tela como limite. Estamos com Marina e não apenas olhamos para ela.
Uma das cenas mais fortes de Uma Mulher Fantástica, onde Marina passa por um exame de corpo de delito, vemos apenas a parte de cima de seu corpo, seus seios miúdos e suas feições de pânico. Difícil qualquer mulher não se sentir como ela naquele momento e em tantos outros em que a ela são recusados – e questionados – os direitos mais básicos. Uma Mulher Fantástica é um longa sobre a falta de autonomia de qualquer ser que se coloque como mulher no mundo e sociedade. Não nos é permitido nada além de um corpo que se sente como incômodo do mundo. Assim como já havia feito em Glória – nos colocando a vida de uma idosa como a protagonista em busca de algo – aqui ele nos coloca diante de uma mulher por escolha, assim como no poema de Angélica Feitas, uma mulher depois. Um filme sensível que coloca o outro como possibilidade, afinal, até onde vai nossa humanidade? Finalizando com a mesma poeta: nada nunca vai mudar –a mulher é uma construção.