A Família

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Em "A Família", o conceito da palavra vai além das pessoas que habitam uma casa ou possuem relações consanguíneas

Seria o conceito, ou a palavra família, que deveria ser repensada? Alas conservadoras ainda batem na tecla de uma ideia única e fechada, como se a geometria entre pai, mãe e filhos fosse uma espécie de fibonacci, que revelaria o sentido da vida. Uma falácia, principalmente quando se coloca na equação as variáveis de classe, raça e também gênero quando se pensa na ausência de uma das partes. Em A Família, filme do venezuelano Gustavo Rondón Córdova, esse conceito vai além das pessoas que habitam uma casa ou possuem relações consanguíneas. Aqui, a classe e a geografia em que estão inseridas ditam como essas pessoas irão se comportar, quem salvará quem, quais irão chorar e vingar a morte dos seus.

O cenário da periferia de Caracas, na Venezuela, não difere em nada com o das brasileiras. Meninos pré-adolescentes jogam bola na rua e todo tipo de xingamento é permissivo entre eles. Alusões sobre homossexualidade e virilidade são modos de instigar uns aos outros. A sexualidade dos garotos nem está à flor da pele, mas desde cedo eles aprendem que devem cumprir esse papel masculino. Os bailes com músicas que mencionam posições sexuais também falam por si só, nesse lugar tem-se muito pouco para se divertir e ir além do cotidiano pesado entre trabalho e sobrevivência.

Logo se destacam o pai – ausente, porque a precariedade do trabalho o faz acumular funções em subempregos pela cidade – e Andres, que aos 12 anos tenta sobreviver como pode nesse ambiente, vagando pelo lugar, fazendo bicos para adultos e arrumando brigas em becos. Praticamente não há diálogo entre os meninos, os resmungos e xingamentos os dividem em grupos de sobrevivência, você nunca sabe quem pode te apontar uma arma. Crescer nesse ambiente costuma ser instantâneo, e é justamente esse ritual entre o menino e o adulto que vai ser o ponto que desencadeia todo o desenvolvimento do longa.

Uma parte do público ria das rixas entre as crianças e os comentários eróticos que faziam com as garotas, mas boa parte das pessoas sentia a tensão em que as cenas eram propostas em tela. A tensão da violência e a instabilidade, com o que poderia vir a acontecer, são os elementos que ditam o tempo em A Família. Entre o reconhecimento de um pai, que olha para o filho de doze anos, já embrutecido pela situação das ausências supridas pela violência de onde vivem e um garoto, que por milissegundos, ainda age como um menino ingênuo, se constrói uma rota, ora de fuga, ora de encontros. A saga de pai e filho pela capital venezuelana pouco tem de heroica, no sentido clássico, é de mais de descoberta, como se percebessem finalmente estarem juntos.

A ausência das mulheres em A Família, apenas acenadas na figuras de pré-adolescentes sexualizadas ou de mães ausentes, além de outras poucas moldadas por sua classe, também denunciam esse universo onde uma aparente hipermasculinidade reina. A figura da mãe numa foto, que nunca olhamos de perto, não diz muito mas também não a julga. Como já dito, tudo e todos são muito efêmeros nesse ambiente urbano e precário de uma cidade da américa latina, não se percebe um apagamento das mulheres mas justamente um aceno à fragilidade desses homens, estimulados a lutarem até à morte num ambiente hostil e sem regras definidas.

O diretor Gustavo Rondón Córdova se destaca em fazer uso em cena das pequenas violências embrenhadas no cotidiano. Uma criança que recolhe cartuchos de bala no chão e as organiza sistematicamente em fileira, como se fossem brinquedos. As feições embrutecidas de meninos de doze anos, que já aprenderam a performar seu papel no ambiente em que vivem. E também o olhar atento de quem está sempre aprendendo algo, absorvendo o ambiente e os silêncios que permitem o espectador prestar atenção e ler as ações dos personagens. O exposto em A Família não precisa de acenos maiores sobre a atual condição da américa latina – aqui, estamos inclusos, pois a semelhança nos arregala os olhos – e mais especificamente da Venezuela, que também passa por uma crise violenta. O precariado, as condições gerais de classe e o embrutecimento do gênero saltam aos olhos aqui, fazendo com que o longa se construa sob uma história simples de pai e filho, porém servindo de alegoria à uma situação macro dos explorados.

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