O Clã

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A filósofa alemã e judia Hannah Arendt fugiu da Alemanha nazista e foi para os EUA em 1941, mais tarde foi incumbida pelo The New York Times a cobrir o julgamento do tenente-coronel da SS (polí­cia nazista) Adolf Eichmann. Após ouvir o depoimento do militar de Hitler, dizendo que era inocente e apenas obedecia ordens, ela criou uma definição que se encaixa muito bem na natureza da história filmada pelo argentino Pablo Trapero no filme O Clã: a banalidade do mal, onde pessoas agem cumprindo ordens, sem pensar se suas ações resultarão em atos de maldade ou bondade, apenas executam por um benefí­cio próprio ou bem que consideram maior.

Eichmann foi preso em um subúrbio de Buenos Aires no começo dos anos 60 e coincidentemente os protagonistas de O Clã, a família Puccio, construiu uma história de horror, loucura e morte em San Isidro – região metropolitana da capital portenha – no começo dos anos 80. O filme abre com o fim da ditadura militar na Argentina em 1973 e a exposição dos horrores causados pela mesma. Em seguida conhecemos Arquimedes Puccio, circulando entre militares e políticos, ele era o patriarca da famí­lia que sequestrava pessoas ricas, torturava e extorquia os familiares por grandes quantias de dinheiro.

Arquimedes, que em tempos ditatoriais, recebia presos políticos e sabia bem como tirar deles confissões que os generais esperavam, passa a sequestrar pela facilidade do dinheiro vindo de famílias ricas desesperadas. Cada pessoa sequestrada ia parar dentro da casa dos Puccio, em algum cômodo mais isolado. Mas nada era escondido, a família inteira trabalhava para que o pai conseguisse trabalhar com o visitante. A forma corriqueira em que os sequestros são realizados seja talvez o maior choque do espectador que vê a famí­lia ora unida ao redor da mesa, ora dando comida para uma pessoa amarrada no banheiro da casa. Os Puccio parecem realmente acreditar que o que estão fazendo faz parte de algo maior e necesssário, mesmo que cruel. E as ditaduras e o fascismo não seriam isso também? Barbáries praticadas por pessoas que acreditam estar desempenhando algo para um bem maior?

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Com cinco filhos – duas mulheres e três homens – Arquimedes arquitetava cada sequestro como se fosse um tenaz artista e de forma hierárquica distribuía respectivos papéis a serem executados pelos filhos homens, já às mulheres cabia levar uma vida comum trabalhando, estudando e cozinhando. Mas em determinado momento as coisas começam a fugir do controle do pai e com o fim da ditadura todo o processo vai ficando mais difícil de manter às escuras.

Pablo Trapero é um diretor que consegue transpor para os cinemas o que há de mais ácido na história e na cultura argentina de forma artística, crí­tica e poética. Filmes como Elefante Branco, Abutres e Leonera são exemplos do estilo certeiro do diretor e que denunciam assuntos pertinentes na América Latina como corrupção, situação de mulheres encarceradas e pouca eficiência dos órgãos públicos. Com O Clã, Trapero continua fazendo um cinema autoral, mas agora com uma produção de peso como a de Almodóvar e escolhendo filmar uma das histórias mais interessantes da Argentina, digna de um roteiro de cinema.

O tom que dita o ritmo de O Clã é de thriller mas sem a ação exacerbada que o estilo demanda. Com uma técnica narrativa bem pautada em contar o cotidiano dos Puccio, o longa foca em uma espécie de psicose que os filhos de Arquimedes – assim como ele próprio – vão desenvolvendo com o passar do tempo. Claro que nenhum dos garotos é inconformado, os três são excelentes atletas de rúgbi e dois promoveram fugas do paí­s para ficar longe do pai, mas a força exercida em nome da famí­lia sempre fala mais alto, parece impossível sair do cí­rculo vicioso criado pelo pai..


O destaque vai para o veterano Guillermo Francella que interpreta Arquimedes e deixa o espectador atônito com tamanha crueldade e autoridade no olhar, por nenhum único momento vacila ou questiona seus atos, pelo contrário, quando não está sequestrando jovens ricos, ele é um pai e marido zeloso. O jovem Juan Pedro Lanzani, que interpreta o promissor Alejandro Alex, também se sai muito bem no peso de seu personagem, o filho mais velho e o mais afetado pelas imposições familiares. A trilha sonora de O Clã conta com bandas de rock da argentina e é Sunday Afternoon dos Kinks que embala cenas de clí­max do roteiro.

O Clã vai além de um filme que retrata uma situação curiosa, assustadora e instigante. É um filme que consegue arrematar qualquer tipo de espectador por colocar na tela uma essência humana em boa parte das vezes inexplicável. Como Relatos Selvagens, outro longa de uma safra produtiva da Argentina, O Clã coloca o espectador a perceber que não só está assistindo a um filme mas também se questionado caso estivesse nas situações da tela, pois se aproximam muito do real. Trapero consegue criar uma empatia que coloca o espectador na sua posição, na expectativa dos fatos.

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O cinema argentino vem se construindo de forma bastante sólida desde os anos 90. O Clã teve uma bilheteria histórica dentro do paí­s, com filas enormes em quase todas as sessões. Além da aprovação de público o filme arrematou uma série de premiações pelo mundo e representa o país no próximo Oscar. Depois de Juan Jose Campanella e O Segredo de Seus Olhos, agora talvez o mundo volte, ainda mais, o olhar para a Argentina e Pablo Trapero, um diretor que como poucos consegue usar a realidade, a transformando em narrativas instigantes, polêmicas e críticas.

Nota:

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