Em Tár, Todd Field constroi uma narrativa densa e desafiadora, um mergulho profundo na vida da renomada maestrina Lydia Tár, interpretada com precisão por Cate Blanchett. Diferente da maioria dos filmes atuais, que expõe minuciosamente o contexto e os detalhes de seus personagens, Tár desafia o público a decifrar Lydia por meio de fragmentos e nuances. Ao longo da obra, Field valoriza a paciência e a concentração do espectador, convidando-o a descobrir a complexa personalidade da protagonista de maneira orgânica, o que contribui para a intensidade da experiência.
A história não segue um enredo convencional, focando-se menos na trama e mais em desvendar as camadas da personalidade de Lydia. Field não esclarece cada detalhe sobre o passado e as motivações da maestrina, o que é uma escolha acertada, já que o objetivo é provocar uma reflexão sobre o que significa alcançar o topo e os sacrifícios, ou concessões, feitos ao longo do caminho. Ao final, ficamos com uma visão instigante, porém incompleta, da personagem, mas essa ambiguidade é exatamente o que fortalece o filme.
A caracterização de Lydia Tár é tão convincente que pode enganar o espectador a ponto de acreditar que ela realmente existiu. Field cria uma figura com tantos traços de verossimilhança que Lydia parece ter saído de uma biografia não autorizada. A introdução do filme, com Lydia sendo entrevistada em um festival, estabelece a personagem com um pé na realidade, enquanto a atuação de Blanchett confere credibilidade e profundidade a essa protagonista fictícia.
Lydia é uma figura central na música clássica mundial, uma artista de temperamento forte e ambição inabalável. Seu currículo é impressionante, com prêmios e conquistas que poucos podem igualar, mas os desafios pessoais e éticos aos quais ela se submete começam a afetá-la à medida que a história avança. Suas relações complicadas, como com a jovem violoncelista Olga e sua esposa Sharon, se desenrolam como peças fundamentais em sua eventual queda. Esses conflitos expõem Lydia como uma figura humana vulnerável e imperfeita, tornando-se um alvo fácil na era da exposição digital.
Cate Blanchett oferece uma performance impressionante apresentando uma versão de sua personagem que foge das reações exageradas e investe em sutilezas e pequenos gestos. Blanchett explora cada faceta de Lydia sem apelar para o melodrama, provando por que é uma das atrizes mais talentosas de sua geração. A profundidade de sua atuação é tanta que Blanchett realiza as cenas de regência e piano por si mesma, permitindo a Field e ao diretor de fotografia Florian Hoffmeister capturar tomadas longas e ininterruptas, que aumentam a intensidade das cenas.
O elenco de apoio em Tár é um complemento essencial à narrativa, proporcionando contrapeso à atuação intensa de Blanchett. Nina Hoss e Noemie Merlant interpretam personagens que refletem as camadas mais humanas e falhas de Lydia, enquanto a jovem Sophie Kauer, em sua estreia como atriz, traz frescor ao filme. Cada ator, cuidadosamente escolhido, contribui para a construção de um universo onde a genialidade e as fraquezas se encontram.
O filme exibe uma confiança rara em sua narrativa e protagonista, recusando-se a apressar ou simplificar a trama para captar a atenção do público. Tár caminha em seu próprio ritmo, assumindo que nem todos se renderão à sua história. Contudo, para aqueles que embarcam, o filme oferece uma visão envolvente e perturbadora do universo artístico, revelando o que existe por trás das conquistas e da fama. Field traz de volta a atmosfera de seus filmes anteriores, com uma abordagem cuidadosa e sem pressa, ecoando uma época em que o cinema era uma experiência mais introspectiva.
Com mais de duas horas e meia de duração, Tár passa de forma surpreendentemente rápida, resultado da qualidade imersiva da narrativa. Não é uma história real, mas sua honestidade emocional e intelectual a torna mais verossímil do que muitos filmes biográficos por aí. A complexidade de Lydia e a frieza com que ela lida com seu círculo pessoal fazem deste filme uma obra que explora não apenas o sucesso, mas as sombras que o perseguem.