Vai e Vem

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"Vai e vem" ensaia uma troca de cartas filmícas entre duas diretoras em um dos momentos mais tensos da pandemia e nos faz pensar o que podemos fazer com as imagens daquele momento

O gênero textual do ensaio – que se torna também fílmico ao longo do século XX – é uma forma potente para a elaboração de si com o mundo. O filme Vai e Vem, conduzido pelas diretoras Fernanda Pessoa e Chica Barbosa, pode ser pensado como um diálogo fílmico (assim elas mesmas o definem) que ensaia uma troca de cartas entre duas amigas cineastas durante o período mais complexo da pandemia de COVID-19, no ano de 2020. Fernanda estava no Brasil, ouvindo panelaços e comentários absurdos do presidente na época; Chica estava se mudando para Los Angeles, nos Estados Unidos, em plenas eleições para presidente e importantes insurreições do movimento Black Lives Matter.

Vai e Vem é um diálogo em todos os sentidos; além das trocas em primeira pessoa do singular e do plural – o “eu” da intimidade entre as diretoras e o “nós” enquanto coletivo passando por uma pandemia –, há todo o acervo de referências das duas realizadoras. Enquanto método, Chica e Fernanda queriam fugir dos aplicativos de reuniões e mensagens, optando por filmar processos enquanto escreviam cartas fílmicas uma para a outra. Elaboraram alguma sistematização sobre a troca de vídeos-ensaios ou vídeo-cartas como chamam: as duas iriam se inspirar em diretoras do cinema experimental e a partir disso criar diálogos cruzados, tanto de técnicas quanto de temáticas.

A observação do tempo, por exemplo, vai se embrenhando pelos corpos das diretoras sem deixar de ser político também. Cenas como um banho de sol no terraço de um prédio ganham uma colagem apocalíptica; do outro lado, um corpo aprende a ser filmado e observado, dirigindo o olhar do companheiro sem perder a autonomia da própria imagem. As amigas falam de leituras, de inquietações, montam cenas cotidianas de plantas e manifestações repletas de pessoas mascaradas empunhando cartazes. As construções são estéticas e também ideológicas, no sentido de se colocarem como diálogos feministas que pensam as que vieram antes e as possibilidades atemporais e, também, locais de construir.

A última carta de Vai e Vem é de janeiro de 2021, olhar daqui para trás, através dessas imagens tão pessoais, nos faz pensar que vivemos algo coletivamente, mesmo que em cada metro quadrado de lugares tão distantes. E aí reside o interesse de ver um filme que ajude a montar o quebra-cabeças das estéticas produzidas durante a mais recente pandemia. Um filme que não tem a pretensão de trazer algum tipo de certeza ou projeto fechado, mas que consiga “traduzir em imagens e sons” o que as duas diretoras tentavam elaborar com a ferramenta que tinham domínio, o cinema, entregando possibilidades de traduzirmos muitas de nossas experiências.

Apesar de Vai e Vem me fazer lembrar da diretora belga Chantal Akerman – lendo as cartas da mãe, enquanto filmava NY vazia nas primeiras horas do dia em Notícias de Casa (1977) –, o longa tem algo de particular por se permitir experimentar e dialogar com outras mulheres. Um dos pontos mais bacanas é quando Fernanda e Chica citam as diretoras que elas queriam colocar para jogo no filme, e ver como isso acontece é outra estratégia da montagem das cartas. O filósofo Adorno, que pensou o gênero do ensaio, disse que era preciso não ter vergonha do entusiasmo com o que outras pessoas fizeram antes, e é assim que elas operam com essa lista e com suas próprias maneiras de filmar.Por fim, Vai e Vem é uma proposta de começo de conversa, ou ainda, de colaboração para uma debate ainda maior, que se trata do que fazemos com as imagens, experiências e práticas vividas e produzidas durante a pandemia de COVID-19. Talvez ainda estejamos saturadas por tudo que passamos, porém, estamos tentando compreender e juntar essas peças e Vai e Vem com certeza é uma delas.

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