Virgínia e Adelaide

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"Virginia e Adelaide": O divã como ato de resistência

Virginia e Adelaide, é uma história real sobre o encontro de duas mulheres que inauguram a psicanálise no Brasil. Elas se conhecem em 1937, um ano após a chegada de Adelaide ao Brasil, vinda de Berlim, fugindo do regime nazista junto com sua família.

Virginia Leone Bicudo (SP – 1910-2003), socióloga, escritora e primeira psicanalista do Brasil, interpretada por Gabriela Correa e Adelaide Koch (Berlim, 1896-São Paulo, 1980), médica e psicanalista, formou a primeira turma de psicanalistas no Brasil, interpretada por Sophie Charlotte, foram médica e paciente por 5 anos, colegas por mais de 30 e amigas a vida inteira.

O filme se passa em uma única locação, a sala da casa de Adelaide, no qual são realizadas as sessões de terapia. A intensidade dos diálogos e a dinâmica das atrizes em cena, são suficientes para capturar a atenção dos expectadores. Destaco aqui a importância do divã, um elemento cênico estratégico na construção da narrativa interpessoal, por meio do qual vai se estabelecendo o contato entre elas, o despertar da confiança, sem necessariamente ser amável e a escuta atenta, tolerante e completa.

A produção é da Casa de Cinema de Porto Alegre que comemora 35 anos de uma trajetória marcada por importantes produções cinematográficas, com uma identidade regional, mas com a capacidade singular de dialogar com o imaginário nacional. A produtora de cinema independente, fundada em 1987, mantém 4 dos seus sócios, Jorge Furtado, Giba Assis Brasil, Nora Goulart, Ana Luiza Azevedo.

O trabalho coletivo é a marca desse grupo, por meio de produções como Ilha das Flores (1989); Houve uma Vez Dois Verões (2002); O Homem que Copiava (2003); Meu Tio Matou um Cara (2004); Saneamento Básico, o Filme (2007); Real Beleza (2015) e Aos Olhos de Ernesto (2019) que buscam refletir e romper com humor, delicadeza e inteligência, os limites geográficos impostos pela produção audiovisual brasileira. Lázaro Ramos, um dos atores que mais trabalhou com Jorge Furtado, afirmou certa vez que ele seria o Alter Ego do diretor, um baiano. Nada mais emblemático, para enfrentar um padrão de produção cultural e celebrar a diversidade e a riqueza das produções brasileiras de outros estados, como Pará, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, só para citar alguns.

Uma obra nunca é vista como uma produção isolada. Nunca se esgota. E não foi diferente dessa vez.

Com um enredo primoroso e uma complexidade subjetiva, o filme acabou impulsionando a relação com uma das célebres cenas de Lázaro Ramos em Ó Paí, Ó (2007), de Monique Gardenberg, que ao contracenar com Wagner Moura, utiliza uma passagem do Mercador de Veneza (1596-1598), de William Shakespeare e troca a expressão “judeu” por “negro”, em um exercício de improviso genial. Roque, seu personagem afirmava: Eu sou negro. Eu sou negro sim. Mas por acaso negro não tem olhos Boca? Hein? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentido Boca? Hein? Não come da mesma comida? Não sofre das mesmas doenças, Boca? Hein? Não precisa dos mesmos remédios? […] quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual, meu irmão? Hein? Quando vocês fazem graça, a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente, porra, a gente não morre também? Lembrei de uma frase de Virginia, “o meu sofrimento não é pelo fato de ser mulher, mas uma mulher negra”.

Virginia, uma mulher negra, filha de uma italiana e um negro alforriado e Adelaide, judia, filha de alemães, possuem trajetórias de vidas distintas, mas com traços em comum, a luta pelo direito à identidade, pelo reconhecido do outro/a como sujeito de direitos e contra todo e qualquer regime que possua como estratégia a desumanização e o extermínio.

A psicanálise acaba se tornando o fio condutor que embasa a construção do roteiro e a pesquisa desenvolvida por Jorge Furtado, uma espécie de elo de cura, cumplicidade e amizade, pois das experiências e dos sofrimentos pessoais, médica e paciente, passam a problematizar o racismo e o nazismo, como marcadores sociais e estruturais tanto das suas subjetividades, quanto da sociedade alemã e brasileira.

É tão potente e transformador o poder da psicanálise na vida de Virginia, que em dado momento, ela passa a defender a sua democratização, o acesso ao autoconhecimento para toda a população. Porém, com profunda clarividência, a paciente, agora uma profissional, acaba promovendo uma mudança repentina em sua vida. Como ampliar o acesso a psicanálise, em um país sem democracia racial? Considerando para o fato de que ela sequer é reconhecida como uma profissional respeitada perante os seus pares.

Conforme afirma Adelaide, “cada um sabe a hora de lutar e de correr”. Virginia segue o conselho da amiga e continua caminhando o seu caminho, lutando e correndo em direção ao seu reconhecimento, pois segundo ela afirma, “se não dá para mudar o país, eu vou mudar do país”, e assim o faz. Ao retornar, reencontra a velha amiga e juntas continuam a enfatizar a luta contra os preconceitos, a importância da ciência, da psicanálise, da arte e da cultura como formas para aliviar o sofrimento.

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