Yvone Kane

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"Yvone Kane" trata da busca de três mulheres profundamente tocadas pela História

Não são incomuns histórias sobre trajetórias de homens em busca de algo que possa-lhes facilitar a assimilação de situações-limite em suas vidas. Longas viagens pelo mundo, pequenas ou grandes obsessões são motes narrativos desde sempre, mas pouco se vê mulheres nesses contextos, não pela ausência de histórias mas sim pelo desinteresse em retratá-las. Em Yvone Kane, a realizadora portuguesa Margarida Cardoso, traça a vida de três mulheres profundamente afetadas pelo colonialismo português na África do século XX, cada uma sendo tocada de forma particular, porém unidas por uma história única de lutas e gênero.

Sara (Irene Ravache) é uma médica que atualmente trabalha com freiras, mas que no passado fez parte de grupos de mulheres em lutas revolucionárias na África. Uma personagem resistente e fria, que está doente e vive distante dos filhos, uma mulher torturada por um passado e desgostosa do presente e do futuro. Sua filha Rita (Beatriz Batarda) acaba de perder uma criança e parte para a África a fim de preencher o vazio deixado, tentando conviver com a mãe e restabelecer laços. É nesses espaços de ruptura existencial que mãe e filha se relacionam com a imagem da guerrilheira Yvone Kane (Mina Andala), assassinada em condições misteriosas há algumas décadas.

A personagem Yvone Kane é fantasmagórica, apresentada apenas através de fotos oficiais de época ou pertencentes à pessoas que conviveram pessoalmente com ela. É uma mulher que representa um misto de figuras importantes de movimentos libertadores na Angola e Moçambique do final do século XX, tais como Josina Machel e Sita Valles. A própria realizadora afirma em entrevista que “A História apaga a intimidade das figuras políticas e se é para esconder, as mulheres são as primeiras a ser apagadas.”. Com essa certeza em mente ela expressa no longa três figuras representativas, ficcionais porém essenciais uma à existência da outra. Apenas se deixando levar pela vida e buscas de cada uma delas é que se torna possível compreender o papel das mulheres nas lutas anticoloniais desses países. Desempenhando papéis de resistência dentro e fora de ambientes privados, em hospitais ou tentando manter suas famílias vivas, elas lutavam com as armas que tinham em seus conflitos silenciosos e silenciados.

Margarida Cardoso viveu em Moçambique com a família nos anos de 1970 por conta de seu pai ser militar e servir ao exército português. Em muitas entrevistas ela comenta sobre essa experiência de sentir que sua origem (portuguesa) afetava profundamente a cultura local e que as lutas de independência mexiam com toda a sua noção de pertencimento. Isso fica bastante claro na execução de Yvone Kane, onde nada é cômodo na história das mulheres colocadas em tela, nesse espaço geográfico não delimitado, sobre o qual temos apenas as informações de falar português, um outro idioma africano irreconhecível ao ouvido branco, além de fortes marcas de outros tempos. Vale ressaltar que Margarida Cardoso constrói essas buscas através de uma visão branca, que é de onde ela pode falar, não deixando de causar incômodos em alguns momentos em que o corpo negro é tratado de forma distante e figurativa, apesar dos afetos marcados deliberadamente.

O filme é, em sua concepção, fragmentado e lento. Se por um lado podemos experimentar a sensação de observar os movimentos e atuação corporal dos atores, por outro não conseguimos nos conectar de fato com os personagens em tela. Parece que ficam nós frouxos na narrativa, não permitindo que adentremos as vidas dessas três mulheres. Provavelmente isso não é um problema do filme em si, mas sim de nossa recepção em não conseguir trabalhar com os fragmentos das histórias, visto que acomodados diante de uma narrativa de começo, meio e fim, esperamos sempre ser atendidos. E esse afrouxamento e distanciamento também se relaciona com a vida dessas pessoas que transitam pelo filme, pois elas não pertencem nem ao espaço geográfico, muito menos em suas próprias histórias. A busca é contínua.

A produção luso-brasileira-moçambicana dialoga bem com o cinema português preocupado com a construção da imagem, com uma cinematografia muito bem desenhada, com fortes metáforas de cor, classe e gênero, muitas vezes a tríade imbricada entre si. Yvone Kane não traz respostas, porém apresenta rastros sobre o quanto o silenciamento da história exige um olhar atento, um olhar de retorno como o anjo da história do filósofo Walter Benjamin que, enquanto caminha para o futuro, observa os detritos da história em seus pés. É preciso voltar-se, explorar o passado e encontrar as pistas para que o presente não cometa os mesmos erros anteriores.

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