Alma do Deserto

Onde assistir
“Alma do Deserto” traz, de maneira poética, ao mesmo tempo realista, a luta de uma idosa índigena e trans pela sua identidade

Identidade, um substantivo que foi solapado, o bicho de sete cabeças entre progressistas e conservadores é, também, uma obrigação civil na maioria dos países que contam com sistemas democráticos e que permitem à população acessar serviços de saúde, educação, previdência. Claro, vale acrescentar que cidadãos só podem exercer o direito ao voto como documento. O medo em relação ao adjetivo “identitário” também tira das pessoas o direito mínimo à identidade, aquele objeto que carrega nossos dados enquanto pessoa física. É sabido que pessoas trans têm muito mais dificuldade de obter e ajustar documentos que, na lógica burocrática, é um direito de toda a gente. Alma do Deserto, direção de Mónica Taboada-Tapia, produção entre Brasil e Colômbia, acompanha a trajetória de uma idosa lutando para existir, mesmo vivendo na efemeridade do deserto.

Georgina é uma mulher trans e indígena da etnia Wayúu. Para o sistema colombiano, ela mal existe com seu nome morto, quem dirá com o nome feminino que carrega há décadas. Apesar do realismo rígido que abre Alma do Deserto – com uma cansativa, porém necessária, cena em que a protagonista está em um posto de obtenção de documentos –, o filme é um ensaio que opera em seu próprio tempo árido: importa mais que olhemos e escutemos Georgina indo e vindo a pé pelas areias nômades. A mulher faz questão de votar nas próximas eleições (ainda na pandemia de COVID-19) e para isso precisa que seus documentos estejam regularizados. Porém, a situação burocrática do país em que vive só dificulta o acesso para pessoas pobres, racializadas e moradoras de fora do eixo central da capital Bogotá.

Em Alma do Deserto acompanhamos pessoas cis e trans que tentam regularizar sua situação de, digamos, pessoa física na lógica do Estado. Percebemos que a questão da identidade – seja de gênero ou etnia – é atravessada pela classe. Como se fosse em tempos recém pós-coloniais (nós da AméricaLatina saímos da situação de colônia?), não interessa para o governo a existência desses eleitores e usuários de serviços públicos, mas é cobrado que exerçam os deveres da cidadania. A história de Georgina enquanto mulher trans é marcada pela violência patriarcal vinda até mesmo dos seus. No filme, sentamos de frente para ela, em uma casa simples onde vive exilada da sua comunidade, e escutamos as suas histórias que envolvem amor e luta por existência. Vamos por todos os lados com a mulher belíssima com seus vestidos esvoaçantes e sempre segurando o chapéu, até mesmo quando ateiam fogo na sua casa. Até mesmo quando ela viaja mais de mil quilômetros apenas para conseguir a identidade e votar, o seu real objetivo. O voto dela é a cereja do bolo no filme. Mas essa sobremesa só vai fazer mais sentido se vocês atravessarem o deserto junto com ela.

Você também pode gostar...