Cyclone

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"Cyclone": Quando a voz feminina rompe o silêncio da história

Cyclone, drama nacional dirigido por Flávia Castro com roteiro de Rita Piffer, revisita São Paulo de 1919 para resgatar a trajetória da escritora Maria de Lourdes Castro Pontes, conhecida como Daisy ou Miss Cyclone, artista cuja potência criativa foi soterrada pelas estruturas sociais e patriarcais da época. Inspirado em fontes como O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo (diário coletivo organizado por Oswald de Andrade) e Neve na Manhã de São Paulo, de José Roberto Walker, o filme se afirma mais como gesto político do que como reconstituição histórica grandiosa, reinterpretando esta história sob uma perspectiva contemporânea e feminista.

A trama acompanha Daisy (ou Cyclone), uma jovem operária de uma gráfica que escreve peças de teatro. Daisy passa a assinar suas obras com Heitor Gamba (Eduardo Moscovis), diretor reconhecido, que se apropria de seus textos omitindo sua autoria, e com quem mantém um relacionamento clandestino. Transitando entre o trabalho operário e os bastidores do Teatro Municipal, ela ambiciona uma bolsa de estudos em Paris, mas vê seu caminho dificultado por uma gravidez inesperada, entraves burocráticos e limitações financeiras. Se estes elementos podem soar melodramáticos, são pesos que permanecem fiéis à realidade feminina e que, portanto, nunca é demais realçá-los.

No filme, o talento artístico de Daisy é tomado como pressuposto. O roteiro opta por não mostrar diretamente suas obras, escolha que pode frustrar espectadores que desejem ver o brilho criativo da protagonista explicitado. Contudo, essa ausência também funciona como uma crítica necessária, uma vez que, às mulheres, o que nunca faltou foi talento, e sim voz. Assim como tantas artistas que a história silenciou, e ainda silencia, Daisy enfrenta as retaliações destinadas às mulheres que anseiam liberdade. Podemos dizer que Cyclone incita, portanto, como as opressões de 1919 ainda reverberam, quando tantas “Cyclones” de hoje continuam sem espaço para que sua arte exista. A atriz Luiza Mariani, lindamente, dá vida a uma protagonista que não se rende, movendo-se como um vendaval insistente.

A predominância de personagens femininas em cena reforça a ideia de uma rede de alianças, feita de partilhas e gestos de solidariedade. Nesse sentido, o filme evidencia que a emancipação individual de uma mulher depende de uma coletividade que se apoia e resiste. Essa perspectiva é consolidada pela própria composição da equipe técnica, majoritariamente feminina, que sob a direção de Flávia Castro, oferece um retrato político e sensível, uma reivindicação por todas aquelas que sempre tiveram talento, mas raramente tiveram voz.

Por fim, vale uma breve menção à fotografia de Heloísa Passos, que aposta em um formato mais quadrado, reminiscente do cinema dos primórdios. Essa característica visual, que prescinde de ostentação cenográfica, fica no limite entre uma possível limitação técnica e uma potência estética deliberada. Mais uma tentativa ousada do cinema nacional. Será interessante acompanhar suas repercussões.

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