Foi Apenas um Acidente

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“Foi Apenas um Acidente”: Entre o acaso e o abismo

Foi Apenas um Acidente parte de uma premissa simples — um atropelamento noturno que poderia passar despercebido — para nos lançar a um labirinto moral onde coincidência e brutalidade se confundem. Jafar Panahi transforma o gesto banal em gatilho para revisitar velhas feridas, mostrando como o trauma, quando silenciado, encontra formas inesperadas de retornar.

A trama acompanha Vanid, um mecânico ainda marcado pelas torturas que sofreu anos antes. Seu encontro com Eghbal poderia ser apenas um atendimento casual na oficina, mas o som da perna protética do cliente desperta lembranças que ele não consegue mais reprimir. Em vez de recorrer apenas ao discurso, o filme deixa que esses ecos ganhem espaço através de reações, silêncios e uma inquietação crescente que Panahi filma com desconfortável proximidade.

Ao reunir outros ex-prisioneiros dispostos a identificar o possível torturador, Panahi constrói um mosaico de histórias atravessadas pela violência de Estado. Esses personagens chegam ao filme carregando suas próprias cicatrizes, e o modo como se unem, hesitam e discutem revela uma ferida coletiva que segue aberta. Há humor ácido, cenas que beiram o absurdo e um constante embaralhamento de tons, mas nada é gratuito: tudo reforça a instabilidade emocional daquele grupo.

O diretor também transforma a narrativa em uma espécie de trânsito caótico por diferentes lugares — oficinas, ruas desertas, um hospital, até um trecho de deserto que parece cenário teatral. Cada novo espaço surge como um reflexo distorcido do país que Panahi observa, onde a normalidade convive com sistemas corruptos que funcionam através de “presentes” e favores. Esses momentos, que poderiam soar caricatos em mãos menos hábeis, aqui tornam o filme ainda mais inquietante.

O suspense cresce à medida que a dúvida sobre a identidade real de Eghbal se intensifica. Ao invés de respostas fáceis, Panahi prefere embaralhar certezas. A pergunta que se impõe não é apenas quem aquele homem realmente é, mas até onde o desespero e a sede de justiça podem moldar — ou deformar — a percepção das vítimas. A violência, mesmo quando não é explícita, se manifesta no olhar desconfiado, na pressa em agir, na necessidade urgente de explicação.

A força de Foi Apenas um Acidente está justamente nesse constante vai-e-vem entre tragédia e humor, paranoia e realidade, num país onde o trauma jamais é individual. Panahi filma a vingança não como um movimento heroico, mas como um processo desgastante, quase grotesco, que revela mais sobre o estado das coisas do que sobre as pessoas envolvidas. O filme é crítico, dolorosamente irônico e impecavelmente consciente de seu tempo e lugar.

Sem perder sua coragem habitual, Panahi entrega aqui um trabalho que equilibra brutalidade emocional, comentários políticos e um humor negro que brota da própria desesperança. É um filme vigoroso, inquietante e surpreendentemente acessível, que reafirma o diretor como uma das vozes mais essenciais do cinema contemporâneo — e que, por tudo isso, se destaca com méritos dentro de sua filmografia.

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