Steven Spielberg e o roteirista Tony Kushner tomaram uma decisão brilhante ao evitar um tradicional retrato biográfico do presidente Abraham Lincoln em Lincoln. Em vez disso, optaram por concentrar a narrativa em um momento crucial: o mês de janeiro de 1865, quando Lincoln travou sua maior batalha política. Esse foco em torno da 13ª Emenda, que abolia a escravidão nos Estados Unidos, não só torna o filme mais denso e envolvente como humaniza um ícone histórico, sem a necessidade de recontar uma vida no formato “melhores momentos”.
Lincoln é lembrado como o presidente que salvou a União e trouxe o fim da escravidão. Spielberg explora esses aspectos, mas o faz sem a visão romantizada que encontramos nos livros de história. Em Lincoln, vemos um homem astuto e consciente, cuja maior força está em sua habilidade de manipular o jogo político sem perder sua moralidade. Ele enfrenta adversários experientes, mas seu carisma e sua sagacidade fazem com que vença os obstáculos. Entre histórias e parábolas, Lincoln conquista a simpatia de quem o assiste e revela por que seu legado é tão sólido.
A trama mescla um estudo de personagem com o que poderia ser considerado um thriller político histórico. Acompanhamos Lincoln enquanto usa manobras políticas — algumas das quais seriam vistas como “sujas” pelos padrões de hoje — para conquistar a maioria necessária na Câmara dos Representantes e aprovar a emenda constitucional. O filme destaca o contraste entre a urgência moral da abolição e as táticas pragmáticas, que incluíam concessões e posições oferecidas como moeda de troca. Nesse contexto, as discussões sobre o direito à liberdade e as tensões entre Lincoln e sua esposa, Mary (Sally Field), acentuam a complexidade dessa luta.
A recriação do ambiente político da década de 1860 é outro ponto de destaque em Lincoln. Spielberg e sua equipe conseguem transportar o público a uma época em que o Congresso era palco de confrontos verbais extremamente duros, tão acirrados quanto os de hoje. Personagens como Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones) trazem uma energia inflamável às cenas de debate, evidenciando que a divisão política já era uma questão central na história americana. Esse retrato detalhado também revela o quão acessível o presidente era ao público, o que reflete uma era política bem diferente da atual.
Embora o roteiro e a direção sejam memoráveis, é a atuação de Daniel Day-Lewis que eleva Lincoln a outro patamar. Em uma interpretação meticulosa e envolvente, ele transcende a simples personificação para se tornar o próprio Lincoln. O ator captura cada nuance do personagem — desde a postura física até a delicadeza emocional — transformando o filme em um verdadeiro estudo de atuação. Não é surpresa que Day-Lewis tenha sido amplamente elogiado e indicado a prêmios, pois sua performance impressiona mesmo quem está acostumado com sua excelência em papéis exigentes.
O elenco de apoio também ganha destaque, com Sally Field transmitindo de forma visceral a instabilidade emocional de Mary Todd Lincoln e Tommy Lee Jones entregando um Thaddeus Stevens impetuoso e apaixonado. Nomes como David Strathairn e Joseph Gordon-Levitt também adicionam profundidade ao filme, tornando Lincoln um espetáculo de atuações em todos os níveis. É um elenco afinado que, junto de Day-Lewis, forma a base sólida do longa.
Para Spielberg, Lincoln representa um retorno marcante ao seu estilo de direção mais sério e comprometido. Após algumas críticas aos filmes anteriores, esta produção vem como uma reafirmação de sua habilidade de trazer o passado à vida de forma impressionante e relevante. Embora Lincoln talvez não alcance o patamar emocional de A Lista de Schindler ou O Resgate do Soldado Ryan, está entre seus trabalhos mais respeitáveis e demonstra sua maestria em abordar temas históricos.
O filme reafirma que, quando bem-feitas, produções históricas têm o poder de ressuscitar épocas e figuras quase mitológicas, criando uma experiência que transcende qualquer livro ou visita a monumentos. Mesmo para aqueles familiarizados com a Guerra Civil e com a figura de Lincoln, Lincoln traz detalhes e perspectivas que renovam nossa compreensão sobre o presidente.
Lincoln é mais do que uma lição de história; é uma janela poderosa para os bastidores de uma batalha política que moldou o destino de um país. Com uma combinação de roteiro envolvente, atuações brilhantes e direção visionária, Spielberg entrega uma obra que inspira, emociona e lembra ao público a importância de revisitar o passado com olhar atento e crítico.