Máquina do Desejo

Onde assistir
Máquina de Desejo aponta os caminhos percorridos por um grupo que perdeu seu idealizador mas que segue funcionando, produzindo desejo e ação.

Para os filósofos franceses Deleuze e Guattari os corpos são máquinas mas não só; as demandas na sociedade, a política, o fascismo, a economia, absolutamente tudo funciona como mecanismos. Não é difícil imaginar que existe uma máquina de guerra e uma máquina de desejo que lutam entre si. No documentário Máquina de Desejo esse embate surge enquanto prática artística, elaborada antes mesmo da proposta filosófica. Ao montar os flashes da trajetória do Teatro Oficina (Uzyna Uzona), de São Paulo, os cineastas Joaquim Castro e Lucas Weglinski expõem não apenas a importância do teatro brasileiro como um espaço em que se produz uma crítica de pensamento encarnado – que, no caso do Oficina, reverbera em diálogo com a literatura, a música, o cinema e até mesmo a arquitetura –, mas, também, a da figura do ator e dramaturgo José Celso Martinez Côrrea, o Zé Celso, enquanto uma real máquina de desejo contra a da guerra, lutando pela cultura do país.

Máquina de Desejo estreia com um sentimento de urgência não apenas pela morte recente de Zé Celso, mas também no sentido de apontar a importância da manutenção da história e memória do Teatro Oficina no meio dos arranha-céus pouco representantes de desejo em uma São Paulo cinza. O documentário abre as portas do teatro, fundado ainda na década de 1950, e faz uma colagem minuciosa de um enorme arquivo de seis décadas de ações que não se limitaram ao palco e ao espaço físico do lugar. Por exemplo, são apresentadas ações fora do teatro, como na década de 1970, período em que o espaço sofreu com situações de ordem material, financeira, de especulação imobiliária, além da censura. O grupo Oficina foi pesquisar e pensar em Portugal e Moçambique, países que estavam lidando com grandes mudanças políticas, como fim de ditadura e luta pós-colonial. Nesses lugares, o grupo passou a ser também de investigação de cinema e fotografia. Quando voltam ao Brasil, também vão ao Distrito Federal cobrar urgência pelas políticas públicas culturais. O movimento é o que mantém a máquina funcionando.

É instigante ver as cenas se concatenando nessa miríade de imagens de arquivo montadas no ritmo que faz jus às peças do grupo. Máquina de Desejo ganhou prêmios de montagem, como no festival de documentários É Tudo Verdade, e é justamente nesse aspecto que dá conta de construir uma narrativa que desliza firme até, pelo menos, a cronologia da década de 1980. O destaque fica por conta do material que se relaciona com as lutas do período ditatorial, principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Ver cada peça se relacionando com a situação “lá fora” – destaque para Rei da Vela, Na Selva das Cidades e Roda Viva – é de uma força poderosa.

Quando uso a palavra encarnado para tratar do pensamento que o Oficina construiu ao longo das seis últimas décadas, me refiro aos movimentos que Zé Celso criou na dramaturgia e nas redes culturais brasileiras, fazendo com que o corpo estivesse no centro do projeto estético que explorava. Para lutar é preciso ter desejo, fazer a máquina operar nessa função.

Em Máquina de Desejo ouvimos muitas vozes que fizeram parte da trajetória do Oficina, atores e atrizes que também são figuras importantes na teledramaturgia brasileira, mas uma das poucas vozes com rosto encarando a câmera é a do próprio Zé Celso. Ele é a máquina que perdoa o torturador mas não a lógica complexa da dominação e do uso do poder. Zé Celso é uma das poucas pessoas que aparece falando no documentário – se pensarmos a ideia clássica de documentário – e, quando ele fala, é como se todas as vozes estivessem corporificadas. Quando ele diz, na primeira vez que aparece de frente para a câmera, descrevendo a tortura que sofreu, no final da década de 1960, que ao encarar o torturador ele percebe que este é também um homem, diz que não alimentou o ressentimento, repetindo “eu ganhei, eu ganhei, eu ganhei!” sorrindo.

Em outra cena emblemática, o grupo Oficina está em Brasília, protestando contra a decisão do Banco Central em não aceitar a compra a prazo do espaço em São Paulo. Com um equipamento de filmagem, Zé Celso fala sobre a condição do artista no Brasil (fala de Glauber Rocha, de Rogério Sganzerla não conseguir fazer filmes). Um homem desempregado ali, entre as pessoas, também reclama que o trabalhador nem comida tem, quem dirá cultura. O ator passa o microfone para esse homem para que ele faça o seu próprio monólogo e, assim, possa encarnar esse lugar entre o corriqueiro/ real e a arte, atuando junto com Zé Celso. Talvez o artista seja mesmo a “antena da raça”, como diria Marshall Mcluhan, captando e distribuindo tudo que acontece pela experiência estética. Máquina de Desejo aponta os caminhos percorridos por um grupo que perdeu seu idealizador mas que segue funcionando, produzindo desejo e ação, por isso vale a pena ser assistido.

Você também pode gostar...