Marinheiro das Montanhas

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Em "Marinheiro das Montanahs", Karim Aïnouz escreve uma carta cinematográfica para a mãe em busca de entender o seu passado e delinear o futuro.

O cinema de arquivo tem se fortalecido nas últimas décadas justamente por fornecer, ao mesmo tempo, questões históricas e detalhes da vida de pessoas que não fazem parte das grandes narrativas – aquelas fundadas pela história de figuras heroicas –, mas que que compõem a riqueza e a formação de outros olhares para o passado. A busca pelas raízes familiares é um dos dispositivos mais corriqueiros nessas produções e Marinheiro das Montanhas, dirigido pelo diretor brasileiro Karim Aïnouz, é um desses filmes que procura respostas no passado e acaba achando pistas para o futuro.

Em 2019 o diretor saiu do Brasil, em um navio, e foi para a Argélia, país que fica ao norte do continente africano e que durante sua história sofreu com inúmeras invasões – justamente por ser costeiro ao mar Meditarrâneo, e também por conter riquezas no deserto do Saara –, tendo como destaque nos últimos séculos a violência do colonialismo francês. A luta pela independência do país, entre as décadas de 1950 e 1960, está atrelada ao nascimento do diretor, assim como a relação de seus pais. É exatamente dessa história que Karim vai atrás.

Marinheiro das Montanhas é uma carta para a mãe recém falecida, na linguagem que o diretor sabe, a do cinema. Enquanto filma a sua ida pelo mar, o diretor monta imagens fotográficas dos pais na década de 1960, quando se encontraram nos Estados Unidos. O pai, um jovem argelino que se afasta da guerra e a mãe, cientista brasileira, que de certa forma também foge da ditadura no Brasil. Sabemos pouco desse romance, apenas que a mãe grávida volta para o seu país e o pai faz uma promessa de que irão se reencontrar, os três, na Argélia. 54 anos afastam a promessa com a ida de fato, e a partir dessa chegada vamos recebendo, ao mesmo tempo, imagens narradas pela sua voz e histórias que se conectam com essas novas descobertas sobre a própria vida do diretor.

Um dos pontos altos do filme é como o diretor costura essa colcha de família, sempre tentando ligar as pontas do passado com as do futuro que ainda são apenas devires. As melhores cenas são filmadas no vilarejo em que seu pai cresceu, na Cabília, região montanhosa do país. Por exemplo, Karim encontra uma criança, sua prima – neta de um tio-avô –, que conta uma história de cosmogonia do seu povo. Ele filma como se ela olhasse bem dentro do olho do futuro, sem esquecer o passado de milhares de anos. Várias crianças do povoado poderiam ser o diretor há décadas atrás; todas vivem com a presença constante de árvores centenárias, famílias ainda mais antigas e desejos latentes por liberdade.

É impressionante como as pessoas filmadas ainda carregam o espírito revolucionário, pois o país segue convivendo com crises econômicas e governos que flertam com totalitarismos. Não à toa, Marinheiro das Montanhas estreou junto de outro filmado no mesmo período, também na Argélia, o Nardjes A., que acompanha uma mulher durante as primeiras manifestações de 2019, contra uma tentativa de golpe pelo presidente da época. Porém, o primeiro se mantém mais em pé justamente pelo que tem de pessoal. O segundo tem um tom mais de exploração pelo olhar estrangeiro.

Apesar de ter atravessado uma pandemia até ser finalizado, Marinheiro das Montanhas apresenta um olhar afetuoso e crítico que parte de quem observa a própria história sabendo que ela compõe histórias maiores e, também, ajuda a questionar as narrativas hegemônicas.

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