A diretora brasileira Lúcia Murat é responsável por alguns dos filmes mais importantes sobre o período ditatorial no Brasil (1964-1985). Construiu o seu cinema, nas últimas quatro décadas, como compromisso com a história do país, também porque viveu o período como militante e, consequentemente, presa e torturada política.
O filme que a consolidou como diretora foi justamente Que bom te ver viva (1989), protagonizado por Irene Ravache, em uma das principais performances de sua carreira. O filme não apenas retrata um período triste, violento e recente, mas mostra um frescor por inovar na abordagem, apontando a violência vivida por mulheres na Ditadura, alternando ficção e depoimentos. Destaque também para A memória que me contam (2012) e o mais recente Ana. Sem Título (2021), que tratam especificamente da Ditadura, também com diferentes visadas para o período. Em O Mensageiro, Murat apresenta mais um olhar para as pessoas envolvidas no dia a dia das prisões, das torturas e dos fantasmas que surgem da violência. Aqui, acompanhamos de perto a relação complexa que Vera (Valentina Herszage), presa política e torturada, e sua família constrói com Armando (Shi Menegat), um soldado muito jovem. Como se o mal pudesse se embrenhar no corpo de um homem – quando aprende os gritos de guerra, veste a farda e age de maneira que se considera masculina para um militar –, Armando vai percebendo que uma espécie de metamorfose age dentro dele. A partir do momento em que o soldado decide olhar para Vera como um ser humano, se instaura uma crise na sua identidade que está em plena formação.
Armando decide levar um recado para o pai e a mãe de Vera, uma família tradicional, católica, mas não conservadora e nem apoiadora da Ditadura. Na verdade, uma família que até então mal entende o que está acontecendo pois está confortável em seu lugar de classe média. Porém, justamente na ideia de tornar a discussão sobre o período mais fresca para as gerações mais jovens, O mensageiro se perde em um roteiro que não se sustenta. A história de Armando e Vera não consegue parar em pé talvez pelo excesso de explicação e na vontade de passar por todos os temas: igreja, violência, questões de raça, gênero e classe etc. Nos momentos em que opera mais com a sugestão, como, por exemplo, os rompantes autoritários que dissociam – no corpo de um jovem muito magro e pouco masculino dentro daquela lógica –, e, também, quando Armando convive com a família de Vera e uma recente namorada, percebendo que pode habitar a normalidade, o filme funciona muito melhor.
Outro ponto positivo em O mensageiro é como Lúcia aparece como personagem que atravessa a história de um país, como deveria ser com todas nós, incluindo espectadoras. Mesmo para quem nasceu já no período democrático, carregamos as tristes heranças de mais de vinte anos de violência militar e isso está visível em várias instituições como a polícia, a burocracia do estado e um recente retorno de pessoas apoiadoras de regimes totalitários. Aqui, Murat oferece a fabulação e segura a câmera boa parte do filme, mas nos momentos em que a história vem para o presente, ela surge como uma professora universitária falando sobre a filósofa alemã Hannah Arendt, que se dedicou a pensar a banalidade do mal, os homens sombrios e as burocracias violentas dos totalitarismos. A nossa história segue sendo construída, amalgamada com o passado e, por isso mesmo, é preciso não esquecer. Nesse aspecto, o mais importante aqui, O mensageiro é um filme que precisa existir e ser assistido.